sábado, 23 de junho de 2018

UNIVESP – Curso de Pedagogia - Disciplina: Filosofia da Educação - Semana 3 - As formas de conhecimento e a relação do sujeito x objeto no processo de conhecimento joralimaTEXTO

UNIVESP – Curso de Pedagogia
Disciplina: Filosofia da Educação
Semana 3 - As formas de conhecimento e a relação do sujeito x objeto no processo de conhecimento

joralimaTEXTO



Os objetivos desta semana são:

1. Entender as características e diferenças entre essas três formas de conhecimento da realidade (o senso comum, a ciência e filosofia) e as explicações do inatismo e do empirismo sobre a relação sujeito x objeto no processo de conhecimento;
2. Compreender as implicações das diferentes concepções epistemológicas (relação sujeito x objeto) para as práticas escolares;
3. Refletir sobre a atualidade do “Mito da Caverna”, de acordo com Saramago, e as consequências de formar “educadores cegos” para os problemas da sociedade contemporânea;
4. Compartilhar suas reflexões e questionamentos com os colegas e com o tutor no Fórum de Discussão.


Videoaula – 9
Antropologia Filosófica e Educação - Parte 1
Prof. Marcos Antônio Lorieri

Antropologia filosófica. Diferente de antropologia cultural, que é uma ciência dentro das ciências sociais, que estuda o ser humano nas suas manifestações ao longo da história. Filosofia da educação. Antonio Joaquim Severino. Três esferas de relações (produtivas, sociais, simbólicas). Relações que o ser humano estabelece com a natureza, com seus semelhantes e consigo mesmo. Relações de produção (transformar a natureza). Relações sociais (com os semelhantes). Símbolos (relações consigo mesmo). Universo das relações técnicas (produtiva e de trabalho). Relações de poder (prática social ou política). Relações intencionais (simbolizadora ou cultura). Trabalho: risco de exploração do homem pelo próprio homem. Prática social: risco de dominação (relações de poder). Simbolizadora: risco de ideologização (literatura, religião, dança, teatro, valores – éticos, morais e, também, estéticos –, folclore, música, pintura, conhecimento, mitos, escultura, cinema). Bom sócio na sociedade.   

Videoaula – 10
Antropologia Filosófica e Educação - Parte 2
Prof. Marcos Antônio Lorieri

Carlos Drummond de Andrade. Poema: “Especulações em torno da palavra homem”. Gramsci (materialismo histórico-dialético/social). O que é o homem? Homem singular. Não dará uma ideia do ser humano no geral. O homem é um processo. Processo de seus atos. Edgar Morin. Livro “Os sete saberes necessários à educação do futuro”. O homem é plenamente biológico e plenamente cultural. Como educar um ser (homem) assim? Kant: temos o germe da discórdia e o germe da concórdia. Racionalista.

Videoaula – 11
As formas de conhecimento

Profa. Sanny S. da Rosa.

Teoria do conhecimento e Educação. Função da filosofia. O que é a realidade? Ontologia. Quem sou eu? Antropologia filosófica. O que é o conhecimento? O que são os valores? Certo e errado? Ética. O que é a política? O que é o belo? Estabelecer a relação entre Teoria do conhecimento e Educação. O que é o conhecimento? É processo de apropriação mental que o homem realiza face ao mundo de que faz parte, na tentativa de elaborar explicações que lhe indiquem, em última instância, o que é tudo”. Lorieri. O conhecimento, 1981. A aparência não corresponde ser aquilo que as coisas são (essência). O que vemos, são fenômenos. O mito da caverna. Narrativa escrita apor Platão. Uma das primeiras tentativas de explicitar natureza versus essência. Parece ser e aquilo que é. Mundo das sombras: o mundo que nós vemos, mundo das aparências. Correntes: a ideia de não saber, ideia de ignorância. Conhecer demanda um esforço racional. Sair da caverna. Há diferentes formas de se conhecer o mundo. Primeiro: os mitos; seguido por religiões, senso comum, arte, ciência, filosofia. Senso comum (trato prático-utilitário, agir comum, hábitos, tradições culturais). Superficial, fragmentário, contraditório. Conhecimento acrítico. Precisa superá-lo em alguns momentos. Ingênuo. Ciência. Conhecimento científico. Metódico, organizado, leis. Quais fatores... Como o mundo funciona. Filosofia. O porquê das coisas do mundo. Busca o sentido. As significações. Epistemologia (estudo do conhecimento).

Videoaula – 12
A relação sujeito x objeto no processo de conhecimento

Profa. Sanny S. da Rosa.

[Vídeo importante]. A inteligência na criança é inata ou adquirida? Articulação entre dois campos da filosofia. Antropologia filosófica (falando sobre o homem) e conhecimento (aprendizagem inata ou adquirida). Lauro de Oliveira Lima: epistemologia popular. Pau que nasce torto... Inatismo. Apriorismo, criacionismo. Água mole em pedra dura... Visão metafísica (até a Idade Média) Empirismo. Tudo é ação do ambiente sobre o homem. O risco que corre o pau corre o machado. Visão Moderna. Interacionismo. Relação permanente entre o sujeito e sua realidade concreta (dialética). Sujeito que conhece (cognoscente). Objeto (cognoscível). Século XIX adiante. No senso comum e na atualidade, convivemos com as três perspectivas simultaneamente. Faz sentido discutir as teorias? Prof. Newton Duarte. Secundarização do estudo das teorias na educação.

Vídeo de apoio

Mago Saramago: Caverna de Platão e as imagens

Cegos. Vivemos de fato na Caverna de Platão, pois as imagens que vemos substituem a realidade. Perdidos de nós próprios e perdidos na relação com o mundo. Outro depoimento fala que gostamos de histórias, porque elas nos dão segurança, mas que já não aceitamos qualquer história e hoje, para sermos tocados por uma história, ela precisa ser extraordinária. E cada vez mais extraordinária.

Vídeo de apoio

Ciência e senso comum: o que é ciência

Divulgação científica. Os participantes saíram a fazer perguntas para as pessoas. Você sabe o que é ciência? Estudo referente à natureza, observando fenômenos, sua origem e como funcionam, fazendo previsões sobre isso. A ciência deve respeitar uma metodologia. Um método científico. Motivo para estudar ciência. Descobrir as coisas é importante para a vida das pessoas. Argumento científico se baseia em provas.



Fichamento dos textos

1.

Marcos Antônio Lorieri. Filosofia da educação. Aula 9. Antropologia e Educação III

Ideias de um pensador brasileiro sobre o ser humano

Antônio Joaquim Severino, no livro “Filosofia da Educação: construindo a cidadania”, afirma que o ser humano é um ser que se constitui, ou se realiza, em três espaços ou esferas de relações: as relações produtivas, as relações sociais e as relações simbólicas. São três tipos de relações que ocorrem simultaneamente na vida das pessoas, estando todas inter-relacionadas ou, mais precisamente, imbricadas umas nas outras. As relações produtivas ocorrem, basicamente, nas práticas através das quais os humanos modificam a natureza; as relações sociais ocorrem nas relações das pessoas entre si; as relações simbólicas utilizam símbolos ou representações através das quais cada pessoa se relaciona consigo própria, buscando situar-se de alguma maneira nos espaços das outras duas relações. Através das relações simbólicas, os humanos dão sentido ao que fazem, produzem justificativas, valores e entendimentos.

Esfera das relações produtivas

É a esfera na qual se dão as relações de transformação de materiais da natureza, ou dela derivados, com vistas a retirar destas relações, ou seja, do trabalho, os elementos necessários para a produção e manutenção da existência material dos seres humanos. Os seres humanos sentem-se, ou deveriam sentir-se, realizados positivamente no trabalho, na participação digna nas relações produtivas. Estas relações não são dignas, ou seja, não respeitam a dignidade humana, quando nelas ocorre a exploração das pessoas. Todas as pessoas precisam participar de relações produtivas de maneira consciente, criativa e satisfatória. Quando há a exploração, isso não ocorre. O ser humano passa a estar numa situação outra que não aquela que seria uma situação digna. Estar numa “situação outra” significa estar numa situação “alienada”.

Esfera da prática social: relações sociais

É a esfera, ou o espaço, no qual todos os seres humanos vivem: o das relações sociais. Todo ser humano já nasce da relação de duas pessoas e, a partir daí, entra em relações múltiplas com inúmeros outros seres humanos. Estas relações duram ao longo de toda a vida de cada pessoa e, nelas, nos formamos de algum modo. É dentro das relações sociais que, na verdade, são inter-relações, que são produzidas as demais relações. Forma-se, aí, o grande conjunto do que se denomina cultura humana. Cultura tem a ver com cultivo: os seres humanos cultivam maneiras de produzir bens, cultivam maneiras de se organizarem em sociedade e cultivam ideias, crenças, valores, artes, mitos, religiões (bens simbólicos) cultivando-se, ao mesmo tempo, como humanos (...). Em todas as relações entre as pessoas (as inter-relações) há sempre um “coeficiente de poder” (...). Parece haver a necessidade do exercício do poder para o bom funcionamento da vida social. Há teorias que negam isso, mas a maioria dos teóricos considera inevitável a presença deste fato do poder. Talvez melhor que falar em poder dever-se-ia falar em autoridade a serviço do bom funcionamento da vida social. Quando [este poder] se apresenta como dominação de uns sobre outros, tem-se a dominação. [Os] educadores devem debater com os educandos sobre a necessidade do respeito mútuo na vida social, sobre o respeito ao bem público ou ao bem comum e especialmente sobre o repúdio a todo tipo de dominação.

Esfera da prática simbolizadora: relações simbólicas

É a esfera no qual são produzidas ideias, crenças, valores (especialmente valores éticos e estéticos), mitos, conhecimentos (filosóficos, científicos, artísticos, religiosos e os do senso-comum), folclore. São denominados de bens simbólicos porque simbolizam a realidade em geral e a vida humana. São produzidos pelos sujeitos humanos no interior de suas interações. Eles permitem uma relação das pessoas consigo próprias e, também, processos comunicativos com os demais sujeitos. São fundamentais para a vida humana e são elementos importantes na constituição dos seres humanos. O conjunto destes bens forma a “cultua simbólica”, muitas vezes denominada apenas de cultura. Por serem bens necessários à vida humana e necessários na constituição dos humanos como humanos, todos devem ter acesso a estes bens e devem desenvolver em si mesmos a capacidade para produzi-los. Aqui entra o importante papel da educação que deve oferecer este acesso desde o mais cedo possível (...).  Severino alerta, aqui, para o risco da ideologização. Ou seja, o risco de que, através dos bens simbólicos, sejam passadas ideias, crenças, valores, entendimentos, sentidos que são próprios e do interesse da classe que domina uma sociedade. Trata-se do processo de “cooptação” das pessoas pela ideologia dominante em determinada sociedade. Ideologia, num sentido amplo, é o conjunto de ideias, crenças, valores que orientam a maneira de agir e de pensar de uma sociedade qualquer. Ideologia dominante é a denominação que se dá a uma ideologia que predomina em uma determinada sociedade ou em uma época como ocorre em nossa realidade social. Denominamos a ideologia dominante em nossa sociedade de ideologia liberal. Neste caso, é dentro dela e “de dentro dela” que são veiculados os significados para tudo o que se refere à existência humana e à realidade na qual a mesma acontece. A ideologia dominante, sendo a ideologia da classe dominante, indica ideias, crenças, valores, sentidos, ligados aos interesses da classe dominante e não aos interesses de todas as pessoas.

Considerações para a educação a partir destas ideias de Severino

Se os seres humanos realizam-se por completo nas três esferas de relações apresentadas por Severino, que conteúdos educacionais devem ser oferecidos às crianças e jovens para que se desenvolvam plenamente como seres humanos? Se é verdade que o ser humano se faz nas relações produtivas, nas relações sociais e nas relações simbólicas (relações que lhe permitem ter e produzir arte, conhecimento, valores, folclore, rituais, religiosidade), o que uma família deveria poder proporcionar às suas crianças e jovens? Alimentação, moradia, roupa, cuidados com a saúde e acesso à escola? Há algo mais que deve ser oferecido? E em ocasiões nas quais as crianças e jovens participam de atividades com suas famílias fora de suas casas? Que atividades formativas escolher? Uma boa escola deveria garantir acesso às diversas produções artísticas e ao “fazer arte”, além de acesso a conhecimentos? Por quê? Como entender a necessidade de acesso a valores e, em especial, acesso a valores morais? Como pensar a denominada educação moral? Uma boa escola deveria oferecer alguns recursos para que seus alunos pudessem se preparar, também, para o trabalho? Para qual trabalho? Cabe à escola oferecer preparo técnico profissional, ou cabe-lhe oferecer recursos básicos que apoiem uma formação para o trabalho? Como entender os três riscos sérios (exploração, dominação e ideologização) que as relações produtivas, sociais e simbólicas carregam? Como neutralizar estes riscos nas relações nas quais os alunos estão (ou estarão) envolvidos? É possível esperar que um ser humano que é sempre explorado, dominado e ideologizado seja um “bom sócio” na sociedade? Que é ser “um bom sócio”? Ou um bom parceiro na vida social? Finalmente, uma pergunta direta a cada um de nós educadores: que seres humanos queremos ser e que seres humanos gostaríamos que as pessoas, a quem queremos bem, fossem? O que é mesmo um ser humano? O que é um ser humano bom?

2.

Marcos Antônio Lorieri. Filosofia da educação. Aula 10. Antropologia e Educação IV

Ideias de alguns pensadores sobre o ser humano


Especulações em torno da palavra homem

Carlos Drummond de Andrade

Mas que coisa é homem
que há sob o nome:
uma geografia?
um ser metafísico? uma
fábula sem signo que a
desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?
Como vai o homem junto
de outro homem, sem
perder o nome?
E não perde o nome e
o sal que ele come
nada lhe acrescenta
nem lhe subtrai da doação
do pai? Como se faz um
homem?
Apenas deitar,
copular, à espera de
que do abdômen
brote a flor do homem?
Como se fazer a si
mesmo, antes
de fazer o homem?
Fabricar o pai e o
pai e outro pai
e um pai mais remoto que
o primeiro homem?
Quanto vale o homem?
Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?
Vale menos, morto?
Menos um que outro, se
o valor do homem
é medida de homem? Como
morre o homem, como
começa a?
Sua morte é fome que a
si mesma come?
Morre a cada passo?
Quando dorme, morre?
Quando morre, morre? A
morte do homem
consemelha a goma que
ele masca, ponche que
ele sorve, sono
que ele brinca, incerto de
estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?
Por que morre o homem?
Campeia outra forma de
existir sem vida?
Fareja outra vida já
não repetida, em
doído horizonte?
Indaga outro homem? Por
que morte e homem
andam de mãos dadas
e são tão engraçadas as
horas do homem? Mas que
coisa é homem?
Tem medo de morte,
mata-se sem medo? Ou
medo é que o mata
com punhal de prata,
laço de gravata, pulo
sobre a ponte?
Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?
Como vive o homem, se
é certo que vive? Que
oculta na fronte?
E por que não conta seu
todo segredo mesmo em
 tom esconso?
Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente?
Porque não se cala, se
a mentira fala, em
tudo que sente?
Porque chora o homem?
Que choro compensa o
mal de ser homem?
Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?
Há alma no homem? E
quem pôs na alma algo
que a destrói?
Como sabe o homem o que
é sua alma e o que é alma
anônima?
Para que serve o homem?
para estrumar flores, para
tecer contos?
para servir o homem?
para criar Deus?
Sabe Deus do homem?
E sabe o demônio? Como
quer o homem ser
destino, fonte?
Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

Andrade, Carlos Drummond de. A vida passada a limpo. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro. Aguilar, 2002. pp 428-431.

Em Sófocles, na sua obra “Antígona”, que é uma tragédia, uma forma de teatro encenada na Grécia, há um coro falado e o texto deste coro traz esta reflexão sobre o humano: “Muitas coisas existem e, contudo, nada mais assombroso do que o homem (...). Possuindo uma habilidade superior ao que se pode imaginar, a destreza para engenhar recursos, algumas vezes ele encaminha para o mal e outras para o bem”. Nessa célebre descrição, acumulam-se todas as características distintivas da espécie humana: a capacidade técnica de controlar as forças naturais colocando-as a nosso serviço (...); a habilidade para caçar ou domesticar a maioria dos outros seres vivos (...); a posse da linguagem e do pensamento racional (Sófocles insiste em que a linguagem foi inventada pelos próprios seres humanos para se comunicarem entre si, não lhes vem de fora como presente de nenhuma divindade); (...) e, sobretudo, a faculdade de utilizar bem ou mal tantas destrezas (o que supõe previamente disposição para distinguir o bem e o mal nas ações ou propósitos, assim como a capacidade de opção entre eles, ou seja: a liberdade) (...). Antônio Gramsci é um filósofo que tem uma concepção alinhada ao materialismo histórico-dialético. O texto a seguir, “O que é o homem”, encontra-se na obra: Concepção Dialética da História, 1995. “Que é o Homem? É esta a primeira e principal pergunta da filosofia. Como respondê-la? A definição pode ser encontrada no próprio homem, isto é, em cada homem singular. Mas ela é exata? Em cada homem singular, pode-se encontrar o que é cada “homem singular”. Mas não nos interessa o que é cada homem singular, problema que significa, ademais, o que é cada homem singular em cada momento singular”. Aqui, Gramsci quer dizer que a pergunta filosófica sobre o ser humano não é uma pergunta sobre as características de cada pessoa em particular, de cada homem singular, e sim sobre o que seria uma ideia geral de ser humano. O que define o Humano? Gramsci: “Deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um processo), nas quais, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único elemento a ser considerado” (...). “A humanidade que se reflete em cada individualidade é composta de diversos elementos: 1) o indivíduo; 2) os outros homens; 3) a natureza. Mas o segundo e o terceiro elementos não são tão simples quanto poderia parecer. O indivíduo não entra em relação com os outros homens por justaposição, mas organicamente, isto é, na medida em que passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos. Desta forma, o homem não entra em relações com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica. E mais: estas relações não são mecânicas. São ativas e conscientes, ou seja, correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual. Daí ser possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central”. (...) Gramsci diz que se busca uma ideia geral do que seja o homem. Uma abstração, diz ele. Abstrações são generalizações. Os conceitos são abstrações. São ideias gerais. Por exemplo, o conceito de árvore é uma ideia geral que reúne nela todas as árvores, ou, as árvores em geral. Gramsci, aí, faz uma pergunta intrigante: estas ideias gerais, ou, as abstrações são postas no ponto de partida, ou no ponto de chegada do pensamento investigativo? Se, para definir o que é o homem – ou qualquer ser – colocamos a abstração como ponto de partida, temos já uma posição que ele denomina de “metafísica” que é outra denominação para as posições que denominamos nos textos anteriores de “essencialistas” ou de idealistas. E se colocadas no ponto de chegada? Nesse caso temos um resultado de compreensão a partir da realidade histórica que nos dá elementos para construirmos uma ideia geral sobre o ser humano (...). O ser humano, ou a ‘natureza humana’, para Gramsci, partindo do que se verifica historicamente, é construída pelos próprios seres humanos nas relações que eles estabelecem com a natureza e entre si. O ser humano é ‘o conjunto das relações sociais’, ou seja, ele é o que as interações sociais fazem dele (...). Edgar Morin é um pensador de nossos dias e vive na França. Na obra “O Método 5: a humanidade da humanidade; a identidade humana” (2003), expressa suas preocupações e seu pensamento a respeito do ser humano. Ele o faz em outras obras também, pois, como diz “permanecemos um mistério para nós mesmos” (idem, p. 16). Para enfrentar este mistério, não nos bastam ciências desligadas umas das outras, ainda que aprofundem estudos especializados sobre aspectos importantes do humano. Nem é suficiente a reflexão filosófica quando se fecha em si mesma sem dialogar com estas ciências e com as artes (...). Morin propõe que sejam integrados os saberes que advêm das artes, pois, “a literatura, a poesia e as artes não são apenas meios de expressão estética, mas também meios de conhecimento” (Idem, p. 17). É preciso que os seres humanos se olhem interiormente, através da introspecção (Idem, p. 17-18). É uma grande e nada simples tarefa. Uma tarefa complexa por todas as dificuldades que encerra e por todas as variáveis que inclui. [Para Morin]: “O humano é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade original. É super e hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as potencialidades da vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades egocêntricas e altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e na embriaguez, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos, e é nesta hipervitalidade que o Homo Sapiens é também o Homo Demens. O homem é, portanto, um ser plenamente biológico, mas, se não dispusesse plenamente da cultura, seria um primata do mais baixo nível (...). O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura” (Idem, p. 52). [Morin] diz, também, que o ser humano é um ser complexo, isto é, com múltiplas características que inclusive são antagônicas porque são contrárias entre si e estão o tempo todo em nós, complementando-se umas às outras. Nas suas palavras: “Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais. Tudo isso constitui o estofo propriamente humano. O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e de desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas ideias, mas que duvida dos deuses e critica as ideias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras” (2000, p. 59). Daí dizer Morin que o ser humano é Sapiens/demens, isto é, racional e, ao mesmo tempo, não racional, com ausência, muitas vezes, de uma mente pensante deixando-se levar por impulsos e desejos (...). Kant, no livro Antropologia de um ponto de vista pragmático (2006), diz algo semelhante ao que diz Morin, apontando que em nós há o germe da discórdia e o da concórdia:
“o característico da espécie humana (...) é que a natureza pôs nela o germe da discórdia e quis que a sua própria razão tirasse dessa discórdia a concórdia, ou ao menos a constante aproximação dela, esta última sendo, com efeito, na ideia o fim, embora de fato aquela primeira (a discórdia) seja, no plano da natureza, o meio de uma sabedoria suprema, imperscrutável para nós: realizar o aperfeiçoamento do ser humano mediante cultura progressiva, ainda que com muito sacrifício da alegria de viver” (2006, p. ). Para Kant, a Razão Humana é o grande trunfo para que a concórdia seja alcançada, vencendo o germe da discórdia. Kant é um racionalista e, para ele, a educação é o caminho para o desenvolvimento dela nas pessoas. Para Morin, não haverá nunca uma “vitória” da racionalidade, mas ela deve preponderar como guiadora da realização humana. Para Morin, como para Kant, como para muitos pensadores, não é nada fácil entender e compreender o ser humano. E não é nada fácil ser um ser humano bom. Mas, o que seria ser um ser humano bom? Esta talvez seja a reflexão mais importante que todos devemos fazer. Principalmente os educadores, que têm como finalidade fundamental de seu trabalho a formação de pessoas boas para uma vida boa numa sociedade boa.

3.

Dermeval Saviani. A filosofia na formação do educador. http://www.scribd.com/doc/7298667/Demerval-Saviani-Do-Senso-Comum-Cons-Ciencia-Filosofica

Em que se baseia essa importância concedida à Filosofia? Teria ela bases reais ou seria mero fruto da tradição? Será que o educador precisa realmente da filosofia? Que é que determina essa necessidade? Em outros termos: que é que leva o educador a filosofar? (...). Com efeito, todos e cada um de nós nos descobrimos existindo no mundo (existência que é agir, sentir, pensar). Tal existência transcorre normalmente, espontaneamente, até que algo interrompe o seu curso, interfere no processo alterando a sua sequência natural. Aí, então, o homem é levado, é obrigado mesmo, a se deter e examinar, procurar descobrir o que é esse algo. E é a partir desse momento que ele começa a filosofar. O ponto de partida da filosofia é, pois, esse algo a que damos o nome de problema. Eis, pois, o objeto da filosofia, aquilo de que trata a filosofia, aquilo que leva o homem a filosofar: são os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência.

1. NOÇÃO DE PROBLEMA

1.1. Os usos correntes da palavra “problema”

Uma questão, em si, não é suficiente para caracterizar o significado da palavra problema. Isto porque uma questão pode comportar (e o comporta com frequência) resposta já conhecida. E quando a resposta é desconhecida? Estaríamos aí diante de um problema? Aqui, porém, nós já estamos abordando uma segunda forma do uso comum e corrente da palavra. Trata-se do problema como não-saber (...). De acordo com esta acepção, problema significa tudo aquilo que se desconhece. Ou, como dizem os dicionários, "coisa inexplicável, incompreensível" (cf. Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol. IV verbete problema, Ed. Delta). Levada ao extremo, tal interpretação acaba por identificar o termo problema com mistério, enigma (o que também pode ser comprovado numa consulta aos dicionários). No entanto, ainda aqui, o fato de desconhecermos algo, a circunstância de não sabermos a resposta a determinada questão, não é suficiente para caracterizar o problema (...). E quando o não-saber é levado a um grau extremo, implicando a impossibilidade absoluta do saber, configura-se, como já se disse, o mistério. Mistério, porém, não é sinônimo de problema. É, ao contrário e frequentemente, a solução do problema, e, quiçá, de todos os problemas. Dá prova disso a experiência religiosa. A atitude de fé implica a aceitação do mistério. O homem de fé vive da confiança no desconhecido ou, melhor dizendo, no incognoscível. Este é a fonte da qual brota a solução para todos os problemas. Em suma, as coisas que nós ignoramos são muitas e nós sabemos disso. Todavia, este fato, como também a consciência deste fato, ou mesmo, a aceitação da existência de fenômenos que ultrapassam irredutivelmente e de modo absoluto a nossa capacidade de conhecimento, nada disso é suficiente para caracterizar o significado essencial que a palavra problema encerra.

1.2. Necessidade de se recuperar a problematicidade do “problema”

O uso comum e corrente da palavra problema acaba por nos conduzir à seguinte conclusão, aparentemente incongruente: “o problema não é problemático” (...). captar a verdadeira concreticidade não é outra coisa senão captar a essência. Não se trata, porém, de algo subsistente em si e por si que esteja oculto por detrás da cortina dos fenômenos. A essência é um produto do modo pelo qual o homem produz sua própria existência. Quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu, ele está vivendo no mundo da "pseudoconcreticidade". Ele toma como essência aquilo que é apenas fenômeno, isto é, aquilo que é apenas manifestação da essência (...). Ele toma por problema aquilo que é apenas manifestação do problema (...). Qual é, então, a essência do problema? (...) O conceito de necessidade é fundamental para se entender o significado essencial da palavra problema. Trata-se, pois, de algo muito simples, embora frequentemente ignorado. A essência do problema é a necessidade (...). Assim, uma questão, em si, não caracteriza o problema, nem mesmo aquela cuja resposta é desconhecida; mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer; eis aí um problema. Algo que eu não sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dúvida que não pode deixar de ser dissipada são situações que se configuram como verdadeiramente problemáticas (...). A verdadeira compreensão do conceito de problema supõe, como já foi dito, a necessidade. Esta só pode existir se ascender ao plano consciente, ou seja, se for sentida pelo homem como tal (aspecto subjetivo); há, porém, circunstâncias concretas que objetivizam a necessidade sentida, tornando possível, de um lado, avaliar o seu caráter real ou suposto (fictício) e, de outro, prover os meios de satisfazê-la. Diríamos, pois, que o conceito de problema implica tanto a conscientização de uma situação de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo) (...). Suponhamos que as 7.100 ilhas do arquipélago das Filipinas tenham, cada uma, um nome determinado. Suponhamos, ainda, que um professor de Geografia exija de seus alunos o conhecimento de todos esses nomes. Os alunos estarão, então, diante de um problema: como conseguir a aprovação em face dessa exigência? Uma vez que eles não necessitam saber os nomes das ilhas (isso não é problema), mas precisam ser aprovados, partirão em busca dos artifícios (“pseudossoluções”) que lhes garantam a aprovação. Está aberto o caminho para a fraude, para a impostura (...). Em suma: problema, apesar do desgaste determinado pelo uso excessivo do termo, possui um sentido profundamente vital e altamente dramático para a existência humana, pois indica uma situação de impasse. Trata-se de uma necessidade que se impõe objetivamente e é assumida subjetivamente. O afrontamento, pelo homem, dos problemas que a realidade apresenta, eis aí, o que é a filosofia. Isto significa, então, que a filosofia não se caracteriza por um conteúdo específico, mas ela é, fundamentalmente, uma atitude; uma atitude que o homem toma perante a realidade. Ao desafio da realidade, representado pelo problema, o homem responde com a reflexão.

2. NOÇÃO DE REFLEXÃO

E que significa reflexão? A palavra nos vem do verbo latino reflectere que significa “voltar atrás”. É, pois, um “re-pensar”, ou seja, um pensamento em segundo grau. Poderíamos dizer: se toda reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão (...). Refletir é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. E é isto o filosofar.
Até aqui a atitude filosófica parece bastante simples, pois uma vez que ela é uma reflexão sobre os problemas e uma vez que todos e cada homem têm problemas inevitavelmente, segue-se que cada homem é naturalmente levado a refletir, portanto, a filosofar.

3. As exigências da reflexão filosófica

A filosofia é uma reflexão sobre os problemas que a realidade apresenta, entretanto, ela não é qualquer tipo de reflexão. Para que uma reflexão possa ser adjetivada de filosófica, é preciso que se satisfaça uma série de exigências, resumidas em três requisitos: a radicalidade, o rigor e a globalidade (...). Radical: em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais próprio e imediato: é preciso que se vá até às raízes da questão, até seus fundamentos. Exige-se que se opere uma reflexão em profundidade. Rigorosa: em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo métodos determinados, colocando-se em questão as conclusões da sabedoria popular e as generalizações apressadas que a ciência pode ensejar. De conjunto: em terceiro lugar, o problema não pode ser examinado de modo parcial, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. É neste ponto que a filosofia se distingue da ciência: ao contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ação é o problema enquanto não se sabe ainda onde ele está; por isso se diz que a filosofia é busca. E é nesse sentido também que se pode dizer que a filosofia abre caminho para a ciência; através da reflexão, ela localiza o problema tornando possível a sua delimitação na área de tal ou qual ciência que pode então analisá-lo e, quiçá, solucioná-lo. Além disso, enquanto a ciência isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se às vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em função do conjunto (...). Por fim, é necessária uma observação sobre a expressão bastante difundida, "problema filosófico". Cabe perguntar: "existem problemas que não são filosóficos?" Na verdade, um problema, em si, não é filosófico, nem científico, artístico ou religioso. A atitude que o homem toma perante os problemas é que é filosófica, científica, artística ou religiosa ou de mero bom-senso. A expressão que estamos analisando é resultante, pois, do uso corrente da palavra problema (já abordado) que a dá como sinônimo de questão, tema, assunto. Aqueles assuntos, que são objeto de estudo dos cientistas, por exemplo, são denominados "problemas científicos". Daí as derivações "problemas sociológicos", "problemas psicológicos", "problemas químicos", etc. Mas como aceitar essa interpretação no caso da filosofia que, como foi dito antes, não tem objeto determinado? Como aceitá-la, se qualquer assunto pode ser objeto de reflexão filosófica? O uso comum e corrente tem se pautado, então, pelo seguinte paralelismo: assim como "problemas científicos" são aquelas questões de que se ocupam os cientistas, "problemas filosóficos" não são outra coisa senão aquelas questões de que se têm ocupado os filósofos. Não se deve esquecer, porém, que não é porque os filósofos se ocuparam com tais assuntos que eles são problemas; mas, ao contrário: é porque eles são (ou foram) problemas que os filósofos se ocuparam e se preocuparam com eles (...). [Tratar-se-iam,] por conseguinte, de problemas que põem em tela, de imediato e de modo inconteste, a necessidade da filosofia. Estaria justificado, nessas circunstâncias, o uso da expressão "problema filosófico".

4. NOÇÃO DE FILOSOFIA

Esclarecendo o significado essencial de problema; explicitados a noção de reflexão e os requisitos fundamentais para que ela seja adjetivada de filosófica, podemos, finalmente, conceituar a filosofia como uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade apresenta. A partir daí, é fácil concluir a respeito do significado da expressão "Filosofia da Educação". Esta não seria outra coisa senão uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta.

5. NOÇÃO DO “FILOSOFIA DE VIDA”

Mas será que isso nos diz alguma coisa? Quando ouvimos falar em filosofia da educação não me parece que ocorra em nosso espírito a ideia acima. Com efeito, ouvimos falar em Filosofia da Educação da Escola Nova, Filosofia da Educação da Escola Tradicional, Filosofia da Educação do Governo de São Paulo, Filosofia da Educação da Igreja Católica, etc.; e sabemos que não se trata aí da reflexão da Igreja Católica, dos educadores da Escola Nova ou do Governo de São Paulo sobre os problemas educacionais; a palavra filosofia refere-se aí à orientação, aos princípios e normas que regem aquelas entidades. Tal orientação pode ou não ser consequência da reflexão. Com efeito, a nossa ação segue sempre certa orientação; a todos momentos estamos fazendo escolhas, mas isso não significa que estamos sempre refletindo; a ação não pressupõe necessariamente a reflexão; podemos agir sem refletir (embora não nos seja possível agir sem pensar). Neste caso, nós decidimos, fazemos escolhas espontaneamente, seguindo os padrões, a orientação que o próprio meio nos impõe. É assim que nós escolhemos nossos clubes preferidos, nossas amizades; é assim que os pais escolhem o tipo de escola para os seus filhos, colocando-os em colégio de padres (ou freiras) ou em colégio do Estado; é assim também que certos professores elaboram o programa de suas cadeiras (vendo o que os outros costumam transmitir, transcrevendo os itens do índice de certos livros didáticos, etc.); e é assim, ainda, que se fundam certas escolas ou que o Governo toma certas medidas. Nessas situações nós não temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de outro modo. Tudo ocorre normalmente, naturalmente, espontaneamente, sem problemas. Proponho que se chame a esse tipo de orientação "filosofia de vida" (...). Esta noção de "filosofia de vida" corresponde, na terminologia gramsciana, ao conceito de "senso comum". Cf. GRAMSCI, A. - Quaderni del Cárcere, especialmente o caderno 10 (na tradução brasileira, ver, Concepção Dialética da Historio, em especial a Parte I).

6. NOÇÃO DE “IDEOLOGIA”

À medida, porém, que a reflexão prossegue, as coisas começam a ficar mais claras e a resposta vai se delineando. Estrutura-se então uma orientação, princípios são estabelecidos, objetivos são definidos e a ação toma rumos novos, tornando-se compreensível, fundamentada, mais coerente. Note-se que também aqui se trata de princípios e normas que orientam a nossa ação. Mas aqui nós temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de outro modo. Contrapondo-se à "filosofia de vida", proponho que se chame a esse segundo tipo de orientação, "ideologia".

7. ESQUEMATIZAÇÃO DA DIALÉTICA “AÇÃO-PROBLEMA-REFLEXÃO-AÇÃO”

Podemos, pois, para facilitar a compreensão, formular o seguinte diagrama:

1. Ação (fundada na filosofia de vida) suscita 2. Problema (exige reflexão: a filosofia) que leva à 3. Ideologia (consequência da reflexão) que acarreta 4. Ação (fundada na ideologia). Não se trata, porém, de uma sequência lógica ou cronológica; é uma sequência dialética. Portanto, não se age primeiro, depois se reflete, depois se organiza a ação e por fim age-se novamente. Trata-se de um processo em que esses momentos se interpenetram, desenrolando o fio da existência humana na sua totalidade. E como não existe reflexão total, a ação trará sempre novos problemas que estarão sempre exigindo a reflexão; por isso, a filosofia é sempre necessária e a ideologia será sempre parcial, fragmentária e superável.   Assim, poderíamos continuar o diagrama anterior, da seguinte forma: 1. Ação (fundada na ideologia) suscita 2. Novos Problemas (exigem reflexão: a filosofia) que levam 3. Reformulação da ideologia (organização da ação) que acarreta 4. Reformulação da ação (fundada na ideologia reformulada).

8. NOÇÃO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Portanto, o que conhecemos normalmente pelo nome de filosofia da educação não o é propriamente, mas identifica-se (de acordo com a terminologia proposta) ora com a "filosofia de vida", ora com a "ideologia". Acreditamos, porém, que a filosofia da educação só será mesmo indispensável à formação do educador; se ela for encarada, tal como estamos propondo, como uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta. Podemos, enfim, responder à pergunta colocada no início: que é que leva o educador a filosofar? O que leva o educador a filosofar são os problemas (entendido esse termo com o significado que lhe foi consignado) que ele encontra ao realizar a tarefa educativa (...). Assim, a tarefa da Filosofia da Educação será oferecer aos educadores um método de reflexão que lhes permita encarar os problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e encaminhando a solução de questões tais como: o conflito entre "filosofia de vida" e "ideologia" na atividade do educador; a necessidade da opção ideológica e suas implicações; o caráter parcial, fragmentário e superável das ideologias e o conflito entre diferentes ideologias; a possibilidade, legitimidade, valor e limites da educação; a relação entre meios e fins na educação (como usar meios velhos em função de objetivos novos?); a relação entre teoria e prática (como a teoria pode dinamizar ou cristalizar a prática educacional?); é possível redefinir objetivos para a educação brasileira? Quais os condicionamentos da atividade educacional? Em que medida é possível superá-los e em que medida é preciso contar com eles? O elenco de questões acima mencionado é apenas um exemplo do caráter problemático da atividade educacional, o que explica a importância e a necessidade da reflexão filosófica para o educador.

9. CONCLUSÃO

Assim encarada, a filosofia da educação não terá como função fixar "a priori" princípios e objetivos para a educação; também não se reduzirá a uma teoria geral da educação enquanto sistematização dos seus resultados. Sua função será acompanhar reflexiva e criticamente a atividade educacional de modo a explicitar os seus fundamentos, esclarecer a tarefa e a contribuição das diversas disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas. Com isso, a ação pedagógica resultará mais coerente, mais lúcida, mais justa; mais humana, enfim.

4.

Flávia da Silva Ferreira Asbahr & Carolina Picchetti Nascimento. Criança não é Manga, não Amadurece: Conceito de Maturação na Teoria Histórico-Cultural. Psicologia: Ciência e Profissão, 1023. 33 (2), 414-427

O enfoque deste artigo está no conceito de maturação e em como tal conceito tem permeado a prática pedagógica.

Teorias sobre o desenvolvimento e o conceito de maturação

A explicação sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento baseadas no conceito de maturação expressa a aparência dessa relação e, ao mesmo tempo, uma profunda biologização desses processos (...). a relação entre desenvolvimento e aprendizagem é uma questão central para a prática pedagógica, sobretudo porque nos remete às questões relacionadas a o que ensinar (os conteúdos), como ensinar (o modo de organizar o ensino) e porque ensinar (a finalidade da educação escolar) (...). O estudo do desenvolvimento humano está voltado, entre outras coisas, para explicar os fatores que influenciam ou que determinam as mudanças no comportamento do indivíduo ao longo do tempo (...). Vigotski é um dos autores que analisa as concepções de desenvolvimento e aprendizagem subjacentes a algumas teorias psicológicas de sua época e suas possíveis implicações educacionais. O autor divide as teorias que explicam a relação entre desenvolvimento e aprendizagem em três categorias fundamentais – a concepção inatista, a concepção empirista/ambientalista e a concepção dualista –, reconhece que, nessas concepções, há uma compreensão maturacionista do desenvolvimento e critica tais abordagens (...). Vigotski não só analisou tais teorias como também as criticou, principalmente no que se refere às suas implicações pedagógicas. Segundo tais teorias, a escola só pode fazer seu trabalho depois que a criança atingir determinado nível de maturação (...). Até determinado momento da história da ciência, particularmente com relação às teorias que procuravam explicar o desenvolvimento humano, a teoria inatista ou pré-formista aparecia como a visão hegemônica (...). Para os adeptos da teoria inatista, o desenvolvimento humano caracteriza-se, fundamentalmente, pelo seu potencial intrínseco (hereditário), com pouca ou nenhuma influência do meio. Os processos de crescimento físico e maturacional – em última análise, o organismo – determinam incondicionalmente o processo de desenvolvimento. Assim, o estado de desenvolvimento da criança de dez anos de idade seria produto direto do seu estado maturacional, isto é, de suas forças internas (...).  Nesse sentido, o desenvolvimento humano resumir-se-ia a um processo de amadurecimento meramente biológico, movido pelas forças e pelas transformações internas do organismo (...). Não existindo mais uma defesa aberta das ideias dessa teoria (ou ao menos não hegemonicamente), resta sabermos em que essa concepção influencia ainda hoje nosso pensamento ou nossos “hábitos de pensamento”, conforme Vigotski (1995). A primeira delas, um tanto quanto influente nas práticas educacionais, é a manutenção da crença de um certo desenvolvimento natural da criança, da crença da existência de uma força intrínseca à criança (processos maturacionais), que saberia ao certo para onde conduzi-la no seu desenvolvimento (...). A segunda forma de influência do pensamento inatista nos dias de hoje relaciona-se à prática de investigação científica e refere-se à redução do desenvolvimento humano a um processo puramente quantitativo. O indivíduo é reduzido, na teoria inatista, a um ser biológico, cujas características já estão dadas desde o nascimento, restando apenas que elas sejam desabrochadas (...). A segunda forma de influência do pensamento inatista nos dias de hoje relaciona-se à prática de investigação científica e refere-se à redução do desenvolvimento humano a um processo puramente quantitativo. O indivíduo é reduzido, na teoria inatista, a um ser biológico, cujas características já estão dadas desde o nascimento, restando apenas que elas sejam desabrochadas (...). Nessa visão, o estudante reúne ou não as condições ou aptidões para aprender, de acordo com as características hereditárias que possui. Como negação da teoria inatista, a teoria empirista/ambientalista do desenvolvimento humano procurou deslocar todas as explicações dadas para a formação do ser humano (que residiam no organismo) para o meio. Para essa teoria, todo o conhecimento dos seres humanos provém de sua experiência no meio físico e social ao qual ele está inserido, meio esse que provoca mudanças no comportamento do indivíduo. Esse processo caracterizaria o desenvolvimento, para essa teoria. Trata-se, assim, de uma inversão, dentro da mesma concepção determinista do desenvolvimento humano; os ambientalistas negam o determinismo biológico dado pela teoria inatista para afirmarem o determinismo ambiental no desenvolvimento do homem. E, justamente por ser uma teoria determinista do desenvolvimento, consideramos que seja, também, uma teoria reducionista, incapaz, portanto, de explicar em sua totalidade o desenvolvimento especificamente humano. De acordo com essa concepção, a educação era vista como mero processo de transmissão de conteúdos, transmitidos pelo professor e recebido pelos alunos, que teriam seu comportamento moldado de acordo com esse processo, ou seja, o meio determinaria inteiramente o desenvolvimento do homem; os seres humanos seriam uma cópia das condições externas. O terceiro grupo teórico busca conciliar as concepções apresentadas anteriormente, fazendo com que coexistam. Trata-se da concepção dualista de desenvolvimento, que considera a existência, por um lado, do processo de maturação que depende do desenvolvimento neurológico, e, de outro, da aprendizagem considerada em si mesma como processo de desenvolvimento (...). O desenvolvimento, porém, continua expressando um âmbito mais amplo do que a aprendizagem (...). Vigotski procura uma nova solução para o problema da relação desenvolvimento e aprendizagem que supere as concepções maturacionistas e ambientalistas presentes nas teorias analisadas. Uma psicologia verdadeiramente histórica e que supere esses determinismos (biológicos e ambientalistas) nasce juntamente à tentativa de elaborar uma psicologia fundamentada no materialismo histórico-dialético: a teoria histórico-cultural.

A concepção de desenvolvimento na teoria histórico-cultural. Ou, por que esperar a maturação não nos permite esperar que a criança se desenvolva?

A teoria histórico-cultural não é uma metodologia nova ou um conjunto de técnicas para auxiliar a prática pedagógica, mas é, fundamentalmente, uma forma de entender o homem naquilo que ele é e naquilo que ele pode vir a ser. Trata-se, em essência, da elaboração das questões psicológicas sobre o que se desenvolve no homem e como se desenvolve, a partir da explicitação e da defesa de uma certa concepção de mundo e de homem: ambos essencialmente históricos (...). O primeiro aspecto a ser realçado da concepção de desenvolvimento da teoria histórico-cultural é a compreensão de que a criança não é um adulto em miniatura. Há uma constituição infantil específica, tanto física como psicológica, que diferencia adultos e crianças não apenas quantitativamente, mas principalmente qualitativamente. Além disso, o desenvolvimento infantil não é linear, causado por acumulações sucessivas. Há metamorfoses, revoluções radicais no processo de desenvolvimento pelas quais passa a criança que irão garantir sua passagem de ser biológico para ser cultural. Essas metamorfoses não são produzidas biologicamente, pelo curso natural do desenvolvimento, mas pela inserção da criança no mundo histórico-cultural: “Uma vez integrada num ambiente adequado, a criança sofre rápidas transformações e alterações: esse é um processo surpreendentemente rápido, porque o ambiente sociocultural pré-existente estimula na criança as formas necessárias de adaptação, há muito tempo criadas nos adultos que a rodeiam” (Vigotski & Luria, 1993, p.180). Assim, entender o que seja o desenvolvimento infantil na perspectiva da teoria histórico-cultural implica assumir que: a) existe uma linha histórico-cultural do desenvolvimento (Vigotski, 1995) que se diferencia de sua linha biológica, b) para desenvolver-se culturalmente, é preciso apropriar-se dos significados historicamente produzidos nas atividades humanas (Leontiev, 1983) (...). O aspecto biológico é o ponto de partida do desenvolvimento humano, mas altera-se no decorrer do processo de apropriação da cultura pelo sujeito (...). A linha biológica do desenvolvimento humano caracteriza-se, sobretudo, por uma relação direta do homem com o mundo, por comportamentos espontâneos ou imediatos, dos quais ele não tem consciência e, assim, não pode controlar plenamente. O segundo tipo de desenvolvimento caracteriza-se pelo surgimento de novas formas de conduta – condutas mediadas –, fruto das conquistas culturais que o homem foi alcançando em suas atividades. Com essas formas culturais de conduta, o homem pôde criar seus órgãos artificiais (instrumentos e signos) e formar uma existência consciente ou uma existência para si (Heller, 1991) (...). Quando dizemos que a criança não está madura, nós a comparamos com um adulto e tomamos seu desenvolvimento como parâmetro. Nesse processo, esquecemo-nos das diferenças qualitativas entre o desenvolvimento infantil e o adulto, focando-nos apenas nas diferenças quantitativas e esquecendo-nos que as novas qualidades do adulto não surgiram nele pela maturação, mas pelo permanente processo de apropriação da cultura humana (...). Para estabelecer a verdadeira diferença entre os instrumentos humanos e os instrumentos nos animais, devemos analisar, de acordo com Leontiev (1978), a atividade em que eles tomam parte. Para os animais, a sua atividade confunde-se sempre com o seu motivo biológico, e os instrumentos encerram, em si, uma possibilidade natural de realizar a sua atividade instintiva. Para o homem, por outro lado, o instrumento possibilita a criação e a apropriação de novas formas de sua atividade no mundo, com os outros e consigo mesmo (...). “Na vara usada pelo macaco, já podemos ver o protótipo não só de um instrumento em geral, mas de toda uma série de instrumentos diferenciados: pás, lanças, e assim por diante. Porém, mesmo no caso dos macacos que, no mundo animal, se encontram no ponto mais elevado quanto ao uso de instrumentos, esses instrumentos ainda não desempenham papel decisivo na luta pela sobrevivência. Na história do desenvolvimento do macaco, ainda não houve aquele salto para diante que constituiu o processo de transformação do macaco em homem, e isso, do ponto de vista que nos interessa, termina no fato de que os instrumentos de trabalho se tornam a base de adaptação à natureza. No processo de desenvolvimento do macaco, esse salto para diante teve início, mas não se completou. A fim de que se complete, é preciso que se desenvolva uma nova forma especial de adaptação à natureza, estranha aos macacos – ou seja, o trabalho (Vigotski & Luria, 1996, p. 88) (...). A Psicologia, como ciência, precisa sair do cativeiro da Biologia e passar ao terreno da Psicologia histórica humana (Vigotski, 1995, p.132); a maturação, portanto, compreendida como maturação biológica, não nos ajuda a compreender e a explicar o desenvolvimento humano (...). Segundo os pressupostos da teoria histórico-cultural, a transformação da memória, bem como das demais funções psicológicas superiores, não pode ser entendida como simples maturação estrutural, mas sim, como metamorfose cultural decorrente do processo de reequipamento cultural possibilitado pelo conteúdo das relações interpessoais apropriadas pelos indivíduos. A transformação da memória relaciona-se intimamente com a transformação das outras funções psicológicas superiores, dando ao desenvolvimento psicológico uma dimensão muito mais cultural do que natural. Nesse sentido, deve-se ressaltar que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores ocorre a partir de mediações culturais. Tal compreensão desloca o foco das dificuldades da aprendizagem do nível individual para o social, e coloca o problema da qualidade das mediações culturais presentes na vida da criança (Facci, Eidt, & Tuleski, 2006). “Verifica-se que as causas do atraso mental não podem ser explicadas somente a partir de anamneses, entrevistas e testagens psicométricas, ou seja, com instrumentos que buscam as causas do não aprender na criança e em sua família, mas essa análise deve ser ampliada para a atividade de ensino e de aprendizagem, especialmente no que se refere à qualidade do conteúdo ministrado, à relação professor-aluno, à metodologia de ensino, à adequação de currículo, ao sistema de avaliação adotado, em suma, ao acesso da criança ao mundo dos instrumentos e signos culturais” (2006, p. 111) (...). Desse modo, o educador jamais pode ser o mediador do processo de ensino e aprendizagem, tampouco o facilitador, posto que ele mesmo é um dos polos da relação a ser mediada: professor-aluno, ensino-aprendizagem, mediato-imediato. O educador, portanto, é sujeito do processo de ensino e de aprendizagem, sujeito que organiza a atividade de ensino, esta sim, assumindo o papel de mediação entre os dois polos da relação, ou seja, buscando estabelecer a relação entre o imediato (os conhecimentos empíricos que os educandos trazem de suas vidas) e o mediato (os conhecimentos teóricos que o professor quer ensinar para os estudantes).

Considerações finais

Na perspectiva teórica assumida neste trabalho, a escola tem papel central no desenvolvimento de seus estudantes, na medida em que cria condições para que se apropriem –através de mediações culturais planejadas e intencionais – dos conhecimentos acumulados pela humanidade, conhecimentos esses que encarnam as novas possibilidades de conduta das crianças, como a atenção voluntária, a memória lógica, o pensamento teórico, a capacidade de leitura e escrita, etc. Essas funções ou condutas estão presentes para cada indivíduo apenas como uma potencialidade, e estão presentes externamente aos indivíduos, isto é, sob a forma de objetos e de relações externas (...). os conteúdos escolares devem ser organizados de maneira a formar na criança aquilo que ainda não está formado, elevando-a a níveis superiores de desenvolvimento. Cabe ao ensino orientado produzir na criança neoformações psíquicas, isto é, produzir novas necessidades e motivos que irão paulatinamente modificando a atividade principal dos alunos e reestruturando os processos psíquicos particulares (Davidov, 1988). Tal concepção de desenvolvimento reconfigura o papel da maturação no processo de aprendizagem e dá à educação escolar um papel central no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Em um sentido oposto ao que vemos nas teorias maturacionistas, não cabe à escola esperar que a criança amadureça. Ao contrário, é seu dever criar condições para que a maturação se efetive.

5.

Marilena de Souza Chauí. Ideologia e educação. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 1, p. 245-257, jan./mar. 2016.

Ideologia

De modo sumário e para os fins que nos interessam aqui, poderíamos “resumir” a noção de ideologia nas seguintes determinações: 1. Um corpus de representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir (...). 2. O corpus assim constituído tem a finalidade de produzir uma universalidade imaginária, pois, na realidade, apenas generaliza para toda a sociedade os interesses e o ponto de vista particulares de uma classe: aquela que domina as relações sociais (...). 3. A eficácia ideológica depende da interiorização do corpus imaginário, de sua identificação com o próprio real e especialmente de sua capacidade para permanecer invisível. Pode-se dizer que uma ideologia é hegemônica quando não precisa mostrar-se, quando não necessita de signos visíveis para se impor, mas flui espontaneamente como verdade igualmente aceita por todos. 4. É nuclear, na ideologia, que ela possa representar o real e a prática social através de uma lógica coerente. A coerência é obtida graças a dois mecanismos: a lacuna e a “eternidade” (...). A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois, sendo a “missão” da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria. 5. A anterioridade do corpus, a universalização do particular, a interiorização do imaginário como algo coletivo e comum e a coerência da lógica lacunar fazem com que a ideologia seja uma lógica da dissimulação (da existência de classes sociais contraditórias) e uma lógica da ocultação (da gênese da divisão social) (...). Para que o trabalho do pensamento se realize, é preciso que a experiência fale de si para poder voltar-se sobre si mesma e compreender-se. O conhecimento tende a cristalizar-se no discurso sobre; o pensamento se esforça para evitar essa tentação apaziguadora, pois quem já sabe, já viu e já disse não precisa pensar, ver e dizer e, portanto, também nada precisa fazer. A experiência é o que está, aqui e agora, pedindo para ser visto, falado, pensado e feito.

Alguns temas para discussão

a) Quem silencia o discurso da educação?

Em nossa sociedade, é tacitamente obedecida uma regra que designarei como a regra da competência e cuja síntese poderia ser assim enunciada: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. Em outras palavras, o emissor, o receptor e o conteúdo da mensagem, assim como a forma, o local e o tempo de sua transmissão dependem de normas prévias que decidem a respeito de quem pode falar e ouvir, o que pode ser dito e ouvido, onde e quando isso pode ser feito. A regra da competência também decide de antemão, portanto, quais são os excluídos do circuito de comunicação e de informação. Essa regra não só reafirma a divisão social do trabalho como algo “natural”, mas sobretudo como “racional”, entendendo por racionalidade a eficiência da realização ou execução de uma tarefa. E reafirma também a separação entre os que sabem e os que “não sabem”, estimulando nestes últimos o desejo de um acesso ao saber por intermédio da informação (isto é, por meio do discurso sobre). A regra da competência nos permite indagar: quem se julga competente para falar sobre a educação, isto é, sobre a escola como forma de socialização? A resposta é óbvia: a burocracia estatal que, por intermédio dos ministérios e das secretarias de educação, legisla, regulamenta e controla o trabalho pedagógico. Há, portanto, um discurso do poder que se pronuncia sobre a educação, definindo seu sentido, finalidade, forma e conteúdo. Quem, portanto, está excluído do discurso educacional? Justamente aqueles que poderiam falar da educação enquanto experiência que é sua: os professores e os estudantes. Resta saber por que se tornou impossível o discurso da educação (...). A regra da competência, somada ao mito da racionalidade encarnada no taylorismo e na burocracia (com suas sequelas, isto é, hierarquia, fragmentação, separação entre dirigentes e dirigidos), acrescida dos padrões de organização e planejamento sob a forma “neutra” da administração, silencia o discurso da educação, para que o poder fale sobre ela. A educação não pode falar porque, se o fizer, obrigará ao reconhecimento de sua existência singular ou específica articulada a outras singularidades que diferenciam as relações sociais, de sorte que, de diferença em diferença, acabaria levando ao reconhecimento das divisões sociais.

b) A noção de maturidade e a confecção de currículos e programas de ensino

Aparentemente, essa ideia encontra fundamento real e objetivo graças às pesquisas das ciências biológicas e psicológicas. Todavia, se focalizarmos nossa atenção numa outra noção, deixada no silêncio, poderemos desconfiar um pouco da cientificidade e da neutralidade da noção de maturidade. Refiro-me à noção de imaturo. Quem, nas sociedades ocidentais modernas, tem sido sistematicamente definido como imaturo? A criança, a mulher, as “raças inferiores” (negros, índios e amarelos) e o povo. Qual a consequência fundamental da imputação de imaturidade a essas figuras? A legitimidade de dirigi-las e governá-las, isto é, de submetê-las. Ora, se a noção de imaturidade é claramente política e ideológica, por que sua contraface, isto é, a maturidade, haveria de ser científica (vale dizer, real e verdadeira)? E, uma vez que programas e currículos são montados sobre essa noção, não caberia analisá-la um pouco mais a fundo para que se pudesse averiguar a quem serve e a que serve? Se fizermos falar o silêncio da imaturidade, o discurso sobre a maturidade permanecerá intacto?

c) Escola e comunidade

Que se entende por comunidade numa sociedade de classes? Quem são os representantes da comunidade junto à escola? Que são e quais os serviços que a escola deve prestar à comunidade? Nas universidades, não há qualquer dificuldade para responder a essas questões. Basta examinar a composição dos Conselhos Universitários para verificar que os representantes da comunidade são os membros do patronato e que os serviços à comunidade consistem em fornecer determinados tipos de mão de obra às empresas. Mas, nas escolas de ensino fundamental e médio, quem é a comunidade? (...). Quando, portanto, aceitamos os termos da lei segundo a qual a escola recebe e presta serviço à comunidade, não estaremos confundindo o bairro, a vila, a periferia, isto é, os agrupamentos, com a comunidade? Mas o que há de ser uma comunidade assim definida? O que se oculta sob ela? O que está sendo silenciado quando se fala sobre comunidade numa sociedade de classes onde as condições objetivas da vida comunitária não podem existir?

d) O critério da autoavaliação

A que e a quem serve uma pedagogia fundada no critério da autoavaliação que escamoteia problemas metafísicos (a identidade consigo mesmo como conquista da autonomia no interior da vida intersubjetiva), antropológicos (o papel da cultura na criação dos símbolos de reconhecimento), sociológicos, políticos e ideológicos (o exercício da dominação graças ao apagamento das diferenças de classes pela universalidade ilusória atribuída à regra particular interiorizada) e psicológicos (a autoavaliação como mecanismo de controle e como instrumento de adaptação)? Não estaríamos aqui diante de uma das formas mais sutis e eficazes de manipulação ideológica, onde a liberdade é definida através de uma autonomia imaginária?

e) Os recursos audiovisuais

Diante dos recursos audiovisuais, poderíamos indagar: a quem interessa uma relação com a cultura na forma do consumismo? A quem interessa a banalização e simplificação da cultura? A quem interessa ocultar a dimensão do trabalho cultural sob a ilusão da “criatividade”? A quem interessa que a educação seja apenas mais um item da cultura de massa e da indústria cultural? Quem lucra, do ponto de vista econômico, com a fabricação desses recursos? Quem lucra, social e politicamente, com seu uso? A quem interessa que a democratização da cultura seja sinônimo de massificação, de tal modo que o “direito igual de todos à educação” se converta automaticamente na suposição de que, para ser um “direito igual”, a educação deve reduzir-se à vulgarização dos conhecimentos através da mídia. Assim como a autoavaliação inventa uma pseudoliberdade, o recurso audiovisual tende a transformar a igualdade educacional em nivelamento cultural pelo baixo nível dos conhecimentos transmitidos.

f) A dinâmica de grupo

Quando examinamos mais de perto as “teorias” acerca da dinâmica de grupo, tendemos a desconfiar de seus resultados, ou melhor, podemos perceber que viabilizam resultados opostos aos que eram esperados. Há pelo menos dois efeitos da dinâmica de grupo que merecem atenção por parte dos pedagogos. O primeiro deles concerne ao fato de que tal dinâmica tende a gerar uma forma nova e mais sutil de dependência recíproca. De fato, ao abolir, em decorrência da força numérica do grupo, a autoridade visível do professor, a dinâmica recria no interior do próprio grupo autoridades invisíveis porque as relações têm a aparência de serem paritárias, quando não o são. Surgem líderes e liderados (...). O segundo efeito da dinâmica de grupo consiste em criar nos seus membros a expectativa de ampliar para além do espaço grupal (no caso, espaço escolar e de classe) a mesma experiência, o que, sendo impossível, gera frustração permanente, pois o microcosmo artificial criado pela dinâmica de grupo não pode transformar-se em macrocosmo social. A tendência, portanto, poderá ser a de tornar os membros do grupo incapazes de enfrentar e resolver conflitos reais toda vez que o “modelo do grupo” não puder ser aplicado, ou, então, torná-los apáticos e indiferentes a tudo quanto ocorra “fora” do grupo. Assim, em lugar do espaço ser ampliado, encontra-se reduzido pela dicotomia entre o “dentro” e o “fora” (...). não se trata de eliminar uma forma de trabalho pedagógico que a experiência tem revelado ser extremamente rica: refiro-me ao trabalho em grupo. Mas sua riqueza advém justamente do fato de ser um trabalho, isto é, das relações entre os membros do grupo estarem mediadas por uma tarefa comum, sendo ela o elemento que une e diferencia os membros do grupo. Neste caso, já não estamos diante da pura relação interpessoal em cujo interior a educação não só tende a tornar-se psicoterapia ilusória, mas ainda pode servir para reproduzir e preparar os estudantes para modelos de relações sociais desejadas pela ideologia contemporânea (como, por exemplo, aquelas produzidas pelas “relações humanas” nas empresas).

g) Educação como formação e como conscientização

Em geral, costuma-se opor educação como formação e educação como informação, oposição que reaparece quando se distinguem aprendizagem e treinamento, conscientização e pragmatismo, espírito crítico e autômatos. Aqueles que privilegiam o polo formação/ aprendizagem/conscientização têm a esperança de que a educação possa ser um instrumento de conhecimento e de transformação do real, graças à sua compreensão crítica. Não podemos também ignorar o fato de que tais oposições implicam uma outra, qual seja, entre uma visão humanista e uma visão tecnocrática da educação. O que é “formar”? (...). Qual seria, então, o risco ideológico da noção de conscientização? Em primeiro lugar, haveria o risco de imaginar o aluno (e a classe social) como uma consciência latente ou virtual, adormecida no seu ser em si e que o professor (ou a vanguarda) viria atualizar ou despertar. Há o risco da atitude iluminista. Em segundo lugar, haveria o risco de imaginar o aluno (e a classe social) como uma consciência de si que, por ignorar-se a si mesma, isto é, não ser ainda para si, tenderia a manifestar-se através de palavras e de ações alienadas ou como “falsa consciência”. Assim sendo, parecerá necessário esperar que a desalienação ou a consciência “verdadeira” lhe seja trazida de fora por aqueles que “sabem”. Há o risco ideológico de diferenciar o aluno (e a classe social) do professor (e da vanguarda) em termos de imaturidade/maturidade, ignorância/ saber, alienação/verdade, em suma, diferenciar hierarquizando e fazendo com que um dos polos seja uma espécie de receptáculo vazio e dócil no qual venha depositar-se um conteúdo exterior trazido pelo outro polo. Com isso, sob o nome de conscientização, reedita-se sob nova roupagem o conservadorismo e o autoritarismo da educação que se pretendia combater.

h) O que seria o professor?

Platão diria: aquele capaz de fazer com que o outro se lembre da verdade, reconhecendo-a. Rousseau diria: aquele capaz de fazer da cultura uma astúcia que reproduza, por novos caminhos, a vida natural perdida. Kant diria: o que traz as luzes, ensinando a pensar em lugar de fornecer pensamentos. O jesuíta disse: aquele capaz de estabelecer uma distância absoluta entre o conhecimento e o real, ensinando, por exemplo, a crianças que falam o português, o latim por meio das regras da gramática latina. Hegel diria: aquele capaz de fazer lembrar e de trazer as luzes, respeitando as etapas de desenvolvimento da consciência. Victor Cousin disse: um funcionário posto pelo Estado a fim de transmitir moral e civismo, formando espíritos aptos necessários ao próprio Estado. Um marxista perguntaria: quem educa o educador? Paulo Freire disse: aquele capaz de conscientizar, revelar a opressão e anular a colonização. Essa multiplicidade de afirmações díspares (...) e abstratas, pois foram feitas sem qualquer consideração do contexto histórico que as solicitava, tem apenas a finalidade de um lembrete óbvio: quando propomos uma pedagogia, além de possuirmos determinadas ideias acerca do conhecimento e de sua transmissão e uma ideia acerca do aluno, qual o professor que pressupomos? (...). O trabalho pedagógico, por ser um trabalho, não é transmissão de conhecimento (para isso existem outros instrumentos), mas também não é um diálogo, uma comunicação intersubjetiva entre o professor e seus alunos (...). A relação professor-aluno é assimétrica e sem diálogo: este se torna possível quando o aluno desaparece e em seu lugar existe o novo professor. O diálogo é ponto de chegada e não ponto de partida, só se torna real quando o trabalho pedagógico termina e o professor encontra-se com o não-aluno, o outro professor, seu igual. É preciso aceitar a assimetria com rigor para não forjar a caricatura do diálogo e exercer disfarçadamente a autoridade. Ausência de diálogo não significa presença da autoridade (...). Ao professor não cabe dizer “faça como eu”, mas “faça comigo”. O professor de natação não pode ensinar o aluno a nadar na areia fazendo-o imitar seus gestos, mas leva-o a lançar-se n’água em sua companhia para que aprenda a nadar lutando contra as ondas, fazendo seu corpo coexistir com o corpo ondulante que o acolhe e repele, revelando que o diálogo do aluno não se trava com seu professor de natação, mas com a água. O diálogo do aluno é com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais e transmitidas pela linguagem e pelos gestos do professor, simples mediador. Por que esse professor é utópico ou possível? Por que ora aparece, ora desaparece? Porque sua posição é muito arriscada: está sempre a um passo de tornar-se guru, de assenhorear-se do lugar do mestre e manter os alunos, para sempre, na condição de discípulos. Uma pedagogia crítica deveria interrogar esse risco cotidiano: de onde vem e por que vem a sedução de tornar-se guru? De onde vem e por que vem em nós e nos alunos o desejo de que haja um Mestre, o apelo à figura da autoridade? E por que, divididos que somos, não cessamos de ter consciência desse risco e dessa sedução sem cessarmos de agir para promovê-los? Que forma mais sutil poderia haver para reconciliar nossa divisão do que fazer com que os alunos dialoguem conosco e não com o pensamento e com o mundo que os rodeia, dissimulando nesse diálogo imaginário o deslocamento operado para conduzir a assimetria real até uma simetria ilusória? A ideologia não está fora de nós como um poder perverso que falseia nossas boas intenções: ela está dentro de nós, talvez porque tenhamos boas intenções.

6.

Johannes Hessen. Teoria do conhecimento. Tradução – João Vergílio Gallerani Cuter. Revisão Técnica – Sérgio Sérvulo da Cunha. Martins Fontes. São Paulo, 2000.

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