Os meninos
morenos
Uma das recordações mais felizes da minha infância é a
da sinfonia dos melros nas palmeiras. A gente chegava muito cedo para a
primeira aula do Grupo Escolar que ficava na praça que era cercada de altas
palmeiras.
Pois é: minha terra tinha palmeiras onde, em vez de
sabiá, cantava o melro. E, como a gente chegava muito cedo para a aula, os
melros ainda estavam cantando sua canção matinal. Era como se estivessem
saudando os meninos morenos, que também chegavam em bando para a escola.
Jarinho chegava para brincar com a gente e vinha com o
melro no ombro. Se a brincadeira era contar história, brincar de gata-parida,
berlinda, mamãe-eu-posso-ir ou qualquer outra que não implicasse em correr, o
melro ficava ali, no ombro do Jarinho. Se, porém, a gente tinha que correr, se
a brincadeira era de pique, de pular-carniça, soltar papagaio, jogar
precipício, cobra-caninana, esconde-esconde ou mãos-ao-ar – que, em outras
cidades se chamava bandido e mocinho – o Jarinho botava o melro no galho de uma
árvore ou no umbral de uma janela e dizia: “Fica aí, que eu já volto”. E o
melro ficava esperando seu dono voltar da brincadeira. A professora pedia ao
Jarinho pra não levar o melro para a escola pra não tumultuar as aulas. O
Jarinho ficava muito triste de deixar seu amigo em casa.
Era agosto, mês das queimadas e das ventanias. Às
vezes, a caminho da escola, na manhã ainda fria, a gente não enxergava um palmo
adiante do nariz, vivendo como se estivesse dentro de um “fog” londrino. Era a
névoa seca das queimadas. Os olhos ficavam vermelhos e voltávamos da escola com
a poeira de cinzas assentadinha nas dobras da camisa branca do uniforme. Quando
não ventava muito, a gente podia ver um raminho de samambaia cinzenta vindo
voando em nossa direção, levemente, como uma pena de ave flutuando no espaço. O
raminho de samambaia tocava nossa roupa e se desfazia em cinzas. Eram as matas
do rio Doce sendo dizimadas pelas queimadas dos derrubadores. Foi num mês de
agosto, no dia seguinte de uma grande ventania, que o Jarinho não apareceu na
escola.
Na semana que se seguiu àquele dia, não só o Jarinho,
mas todos os meninos da rua não fizeram outra coisa senão procurar o melro do
Jarinho.
Ele o havia deixado num galho de árvore para fazer uma
coisa qualquer (que era melhor fazer sem seu amigo). Foi quando começou o
furacão. Foi de repente, eu me lembro.
Nunca havia ventado tanto na minha cidade. As pessoas
se agarravam nos postes para não serem arrastadas, telhas voaram pelos ares,
casebres ficaram sem teto, folhas das palmeiras imperiais da praça se
desprenderam, voando a grandes alturas, ameaçadoras.
Todos os meninos da rua só faltaram morrer de
tristeza, o Jarinho ficou de cama e não me lembro mais de voltar a vê-lo imitar
seus passarinhos. Minha mãe, que era uma sábia, tentou explicar para os meninos
da rua que era bom a gente prestar bastante atenção nas coisas boas, enquanto
elas duram.
Muitos e muitos anos depois – agora, recentemente –
reencontrei o Jarinho. Era um senhor gordinho com os cabelos – muito poucos –
completamente brancos e os olhos pequenos mais sumidos do que nunca [...]. Perguntei-lhe
se se lembrava, com a mesma intensidade que eu, dos velhos tempos da rua de
nossa infância. E falei do melro no seu ombro e ele me disse: “Não me esqueço
nunca. Ainda hoje, tantos anos depois, acordo no meio da noite e, dentro do meu
quarto, escuto o meu melro cantando direitinho como se estivesse ali”. Que bom!
Jarinho acredita que existe fantasma de passarinho.
Ziraldo. Os meninos morenos
(trecho). São Paulo: Melhoramentos, 2004, p. 45-48.
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