UNIVESP
– Curso de Pedagogia
Disciplina: Filosofia da Educação
Semana
3 - As formas de conhecimento e a relação do sujeito x objeto no processo de
conhecimento
joralimaTEXTO
Os objetivos desta semana são:
1. Entender as características e
diferenças entre essas três formas de conhecimento da realidade (o senso comum,
a ciência e filosofia) e as explicações do inatismo e do empirismo sobre a
relação sujeito x objeto no processo de conhecimento;
2. Compreender as implicações das
diferentes concepções epistemológicas (relação sujeito x objeto) para as
práticas escolares;
3. Refletir sobre a atualidade do
“Mito da Caverna”, de acordo com Saramago, e as consequências de formar “educadores
cegos” para os problemas da sociedade contemporânea;
4. Compartilhar suas reflexões e
questionamentos com os colegas e com o tutor no Fórum de Discussão.
Videoaula – 9
Antropologia
Filosófica e Educação - Parte 1
Prof.
Marcos Antônio Lorieri
Antropologia
filosófica. Diferente de antropologia cultural, que é uma ciência dentro das
ciências sociais, que estuda o ser humano nas suas manifestações ao longo da
história. Filosofia da educação. Antonio Joaquim Severino. Três esferas de
relações (produtivas, sociais, simbólicas). Relações que o ser humano
estabelece com a natureza, com seus semelhantes e consigo mesmo. Relações de
produção (transformar a natureza). Relações sociais (com os semelhantes).
Símbolos (relações consigo mesmo). Universo das relações técnicas (produtiva e
de trabalho). Relações de poder (prática social ou política). Relações
intencionais (simbolizadora ou cultura). Trabalho: risco de exploração do homem
pelo próprio homem. Prática social: risco de dominação (relações de poder). Simbolizadora:
risco de ideologização (literatura, religião, dança, teatro, valores – éticos,
morais e, também, estéticos –, folclore, música, pintura, conhecimento, mitos,
escultura, cinema). Bom sócio na sociedade.
Videoaula – 10
Antropologia
Filosófica e Educação - Parte 2
Prof.
Marcos Antônio Lorieri
Carlos
Drummond de Andrade. Poema: “Especulações em torno da palavra homem”. Gramsci
(materialismo histórico-dialético/social). O que é o homem? Homem singular. Não
dará uma ideia do ser humano no geral. O homem é um processo. Processo de seus
atos. Edgar Morin. Livro “Os sete saberes necessários à educação do futuro”. O
homem é plenamente biológico e plenamente cultural. Como educar um ser (homem)
assim? Kant: temos o germe da discórdia e o germe da concórdia. Racionalista.
Videoaula – 11
As formas de
conhecimento
Profa.
Sanny S. da Rosa.
Teoria
do conhecimento e Educação. Função da filosofia. O que é a realidade?
Ontologia. Quem sou eu? Antropologia filosófica. O que é o conhecimento? O que
são os valores? Certo e errado? Ética. O que é a política? O que é o belo?
Estabelecer a relação entre Teoria do conhecimento e Educação. O que é o
conhecimento? É processo de apropriação mental que o homem realiza face ao
mundo de que faz parte, na tentativa de elaborar explicações que lhe indiquem,
em última instância, o que é tudo”. Lorieri. O conhecimento, 1981. A aparência
não corresponde ser aquilo que as coisas são (essência). O que vemos, são
fenômenos. O mito da caverna. Narrativa escrita apor Platão. Uma das primeiras
tentativas de explicitar natureza versus
essência. Parece ser e aquilo que é. Mundo das sombras: o mundo que nós vemos,
mundo das aparências. Correntes: a ideia de não saber, ideia de ignorância.
Conhecer demanda um esforço racional. Sair da caverna. Há diferentes formas de
se conhecer o mundo. Primeiro: os mitos; seguido por religiões, senso comum,
arte, ciência, filosofia. Senso comum
(trato prático-utilitário, agir comum, hábitos, tradições culturais).
Superficial, fragmentário, contraditório. Conhecimento acrítico. Precisa
superá-lo em alguns momentos. Ingênuo. Ciência.
Conhecimento científico. Metódico, organizado, leis. Quais fatores... Como o
mundo funciona. Filosofia. O porquê
das coisas do mundo. Busca o sentido. As significações. Epistemologia (estudo
do conhecimento).
Videoaula – 12
A relação sujeito
x objeto no processo de conhecimento
Profa.
Sanny S. da Rosa.
[Vídeo importante].
A inteligência na criança é inata ou adquirida? Articulação entre dois campos
da filosofia. Antropologia filosófica (falando sobre o homem) e conhecimento
(aprendizagem inata ou adquirida). Lauro de Oliveira Lima: epistemologia
popular. Pau que nasce torto... Inatismo.
Apriorismo, criacionismo. Água mole em pedra dura... Visão metafísica (até a
Idade Média) Empirismo. Tudo é ação
do ambiente sobre o homem. O risco que corre o pau corre o machado. Visão
Moderna. Interacionismo. Relação
permanente entre o sujeito e sua realidade concreta (dialética). Sujeito que
conhece (cognoscente). Objeto (cognoscível). Século XIX adiante. No senso comum
e na atualidade, convivemos com as três perspectivas simultaneamente. Faz
sentido discutir as teorias? Prof. Newton Duarte. Secundarização do estudo das
teorias na educação.
Vídeo de apoio
Mago Saramago:
Caverna de Platão e as imagens
Cegos.
Vivemos de fato na Caverna de Platão, pois as imagens que vemos substituem a
realidade. Perdidos de nós próprios e perdidos na relação com o mundo. Outro
depoimento fala que gostamos de histórias, porque elas nos dão segurança, mas
que já não aceitamos qualquer história e hoje, para sermos tocados por uma
história, ela precisa ser extraordinária. E cada vez mais extraordinária.
Vídeo de apoio
Ciência e senso
comum: o que é ciência
Divulgação
científica. Os participantes saíram a fazer perguntas para as pessoas. Você
sabe o que é ciência? Estudo referente à natureza, observando fenômenos, sua
origem e como funcionam, fazendo previsões sobre isso. A ciência deve respeitar
uma metodologia. Um método científico. Motivo para estudar ciência. Descobrir
as coisas é importante para a vida das pessoas. Argumento científico se baseia
em provas.
Fichamento
dos textos
1.
Marcos
Antônio Lorieri. Filosofia da educação. Aula 9. Antropologia e Educação III
Ideias de um
pensador brasileiro sobre o ser humano
Antônio
Joaquim Severino, no livro “Filosofia da Educação: construindo a cidadania”,
afirma que o ser humano é um ser que se constitui, ou se realiza, em três
espaços ou esferas de relações: as relações produtivas, as relações sociais e as
relações simbólicas. São três tipos de relações que ocorrem simultaneamente na
vida das pessoas, estando todas inter-relacionadas ou, mais precisamente, imbricadas
umas nas outras. As relações produtivas
ocorrem, basicamente, nas práticas através das quais os humanos modificam a
natureza; as relações sociais ocorrem
nas relações das pessoas entre si; as relações
simbólicas utilizam símbolos ou representações através das quais cada
pessoa se relaciona consigo própria, buscando situar-se de alguma maneira nos
espaços das outras duas relações. Através das relações simbólicas, os humanos
dão sentido ao que fazem, produzem justificativas, valores e entendimentos.
Esfera das
relações produtivas
É
a esfera na qual se dão as relações de transformação de materiais da natureza,
ou dela derivados, com vistas a retirar destas relações, ou seja, do trabalho,
os elementos necessários para a produção e manutenção da existência material
dos seres humanos. Os seres humanos sentem-se, ou deveriam sentir-se,
realizados positivamente no trabalho, na participação digna nas relações
produtivas. Estas relações não são dignas, ou seja, não respeitam a dignidade
humana, quando nelas ocorre a exploração das pessoas. Todas as pessoas precisam
participar de relações produtivas de maneira consciente, criativa e
satisfatória. Quando há a exploração, isso não ocorre. O ser humano passa a
estar numa situação outra que não aquela que seria uma situação digna. Estar
numa “situação outra” significa estar numa situação “alienada”.
Esfera da prática
social: relações sociais
É
a esfera, ou o espaço, no qual todos os seres humanos vivem: o das relações
sociais. Todo ser humano já nasce da relação de duas pessoas e, a partir daí,
entra em relações múltiplas com inúmeros outros seres humanos. Estas relações
duram ao longo de toda a vida de cada pessoa e, nelas, nos formamos de algum
modo. É dentro das relações sociais que, na verdade, são inter-relações, que
são produzidas as demais relações. Forma-se, aí, o grande conjunto do que se
denomina cultura humana. Cultura tem a ver com cultivo: os seres humanos
cultivam maneiras de produzir bens, cultivam maneiras de se organizarem em
sociedade e cultivam ideias, crenças, valores, artes, mitos, religiões (bens
simbólicos) cultivando-se, ao mesmo tempo, como humanos (...). Em todas as
relações entre as pessoas (as inter-relações) há sempre um “coeficiente de
poder” (...). Parece haver a necessidade do exercício do poder para o bom
funcionamento da vida social. Há teorias que negam isso, mas a maioria dos teóricos
considera inevitável a presença deste fato do poder. Talvez melhor que falar em
poder dever-se-ia falar em autoridade a serviço do bom funcionamento da vida
social. Quando [este poder] se apresenta como dominação de uns sobre outros,
tem-se a dominação. [Os] educadores devem debater com os educandos sobre a
necessidade do respeito mútuo na vida social, sobre o respeito ao bem público
ou ao bem comum e especialmente sobre o repúdio a todo tipo de dominação.
Esfera da prática
simbolizadora: relações simbólicas
É
a esfera no qual são produzidas ideias, crenças, valores (especialmente valores
éticos e estéticos), mitos, conhecimentos (filosóficos, científicos,
artísticos, religiosos e os do senso-comum), folclore. São denominados de bens
simbólicos porque simbolizam a realidade em geral e a vida humana. São
produzidos pelos sujeitos humanos no interior de suas interações. Eles permitem
uma relação das pessoas consigo próprias e, também, processos comunicativos com
os demais sujeitos. São fundamentais para a vida humana e são elementos
importantes na constituição dos seres humanos. O conjunto destes bens forma a
“cultua simbólica”, muitas vezes denominada apenas de cultura. Por serem bens
necessários à vida humana e necessários na constituição dos humanos como
humanos, todos devem ter acesso a estes bens e devem desenvolver em si mesmos a
capacidade para produzi-los. Aqui entra o importante papel da educação que deve
oferecer este acesso desde o mais cedo possível (...). Severino alerta, aqui, para o risco da
ideologização. Ou seja, o risco de que, através dos bens simbólicos, sejam
passadas ideias, crenças, valores, entendimentos, sentidos que são próprios e
do interesse da classe que domina uma sociedade. Trata-se do processo de
“cooptação” das pessoas pela ideologia dominante em determinada sociedade.
Ideologia, num sentido amplo, é o conjunto de ideias, crenças, valores que
orientam a maneira de agir e de pensar de uma sociedade qualquer. Ideologia
dominante é a denominação que se dá a uma ideologia que predomina em uma
determinada sociedade ou em uma época como ocorre em nossa realidade social.
Denominamos a ideologia dominante em nossa sociedade de ideologia liberal.
Neste caso, é dentro dela e “de dentro dela” que são veiculados os significados
para tudo o que se refere à existência humana e à realidade na qual a mesma
acontece. A ideologia dominante, sendo a ideologia da classe dominante, indica
ideias, crenças, valores, sentidos, ligados aos interesses da classe dominante
e não aos interesses de todas as pessoas.
Considerações para
a educação a partir destas ideias de Severino
Se
os seres humanos realizam-se por completo nas três esferas de relações
apresentadas por Severino, que conteúdos educacionais devem ser oferecidos às
crianças e jovens para que se desenvolvam plenamente como seres humanos? Se é
verdade que o ser humano se faz nas relações produtivas, nas relações sociais e
nas relações simbólicas (relações que lhe permitem ter e produzir arte,
conhecimento, valores, folclore, rituais, religiosidade), o que uma família
deveria poder proporcionar às suas crianças e jovens? Alimentação, moradia,
roupa, cuidados com a saúde e acesso à escola? Há algo mais que deve ser
oferecido? E em ocasiões nas quais as crianças e jovens participam de
atividades com suas famílias fora de suas casas? Que atividades formativas
escolher? Uma boa escola deveria garantir acesso às diversas produções
artísticas e ao “fazer arte”, além de acesso a conhecimentos? Por quê? Como
entender a necessidade de acesso a valores e, em especial, acesso a valores
morais? Como pensar a denominada educação moral? Uma boa escola deveria
oferecer alguns recursos para que seus alunos pudessem se preparar, também,
para o trabalho? Para qual trabalho? Cabe à escola oferecer preparo técnico profissional,
ou cabe-lhe oferecer recursos básicos que apoiem uma formação para o trabalho? Como
entender os três riscos sérios (exploração, dominação e ideologização) que as
relações produtivas, sociais e simbólicas carregam? Como neutralizar estes
riscos nas relações nas quais os alunos estão (ou estarão) envolvidos? É
possível esperar que um ser humano que é sempre explorado, dominado e
ideologizado seja um “bom sócio” na sociedade? Que é ser “um bom sócio”? Ou um
bom parceiro na vida social? Finalmente, uma pergunta direta a cada um de nós
educadores: que seres humanos queremos ser e que seres humanos gostaríamos que
as pessoas, a quem queremos bem, fossem? O que é mesmo um ser humano? O que é
um ser humano bom?
2.
Marcos
Antônio Lorieri. Filosofia da educação. Aula 10. Antropologia e Educação IV
Ideias de alguns
pensadores sobre o ser humano
Especulações em
torno da palavra homem
Carlos Drummond de Andrade
Mas
que coisa é homem
que
há sob o nome:
uma
geografia?
um
ser metafísico? uma
fábula
sem signo que a
desmonte?
Como
pode o homem
sentir-se
a si mesmo,
quando
o mundo some?
Como
vai o homem junto
de
outro homem, sem
perder
o nome?
E
não perde o nome e
o
sal que ele come
nada
lhe acrescenta
nem
lhe subtrai da doação
do
pai? Como se faz um
homem?
Apenas
deitar,
copular,
à espera de
que
do abdômen
brote
a flor do homem?
Como
se fazer a si
mesmo,
antes
de
fazer o homem?
Fabricar
o pai e o
pai
e outro pai
e
um pai mais remoto que
o
primeiro homem?
Quanto
vale o homem?
Menos,
mais que o peso?
Hoje
mais que ontem?
Vale
menos, velho?
Vale
menos, morto?
Menos
um que outro, se
o
valor do homem
é
medida de homem? Como
morre
o homem, como
começa
a?
Sua
morte é fome que a
si
mesma come?
Morre
a cada passo?
Quando
dorme, morre?
Quando
morre, morre? A
morte
do homem
consemelha
a goma que
ele
masca, ponche que
ele
sorve, sono
que
ele brinca, incerto de
estar
perto, longe?
Morre,
sonha o homem?
Por
que morre o homem?
Campeia
outra forma de
existir
sem vida?
Fareja
outra vida já
não
repetida, em
doído
horizonte?
Indaga
outro homem? Por
que
morte e homem
andam
de mãos dadas
e
são tão engraçadas as
horas
do homem? Mas que
coisa
é homem?
Tem
medo de morte,
mata-se
sem medo? Ou
medo
é que o mata
com
punhal de prata,
laço
de gravata, pulo
sobre
a ponte?
Por
que vive o homem?
Quem
o força a isso,
prisioneiro
insonte?
Como
vive o homem, se
é
certo que vive? Que
oculta
na fronte?
E
por que não conta seu
todo
segredo mesmo em
tom esconso?
Por
que mente o homem?
mente
mente mente
desesperadamente?
Porque
não se cala, se
a
mentira fala, em
tudo
que sente?
Porque
chora o homem?
Que
choro compensa o
mal
de ser homem?
Mas
que dor é homem?
Homem
como pode
descobrir
que dói?
Há
alma no homem? E
quem
pôs na alma algo
que
a destrói?
Como
sabe o homem o que
é
sua alma e o que é alma
anônima?
Para
que serve o homem?
para
estrumar flores, para
tecer
contos?
para
servir o homem?
para
criar Deus?
Sabe
Deus do homem?
E
sabe o demônio? Como
quer
o homem ser
destino,
fonte?
Que
milagre é o homem?
Que
sonho, que sombra?
Mas
existe o homem?
Andrade, Carlos
Drummond de. A vida passada a limpo.
In: Poesia Completa. Rio de Janeiro. Aguilar, 2002. pp 428-431.
Em
Sófocles, na sua obra “Antígona”, que é uma tragédia, uma forma de teatro encenada
na Grécia, há um coro falado e o texto deste coro traz esta reflexão sobre o
humano: “Muitas coisas existem e, contudo, nada mais assombroso do que o homem (...).
Possuindo uma habilidade superior ao que se pode imaginar, a destreza para
engenhar recursos, algumas vezes ele encaminha para o mal e outras para o bem”.
Nessa célebre descrição, acumulam-se todas as características distintivas da
espécie humana: a capacidade técnica de controlar as forças naturais
colocando-as a nosso serviço (...); a habilidade para caçar ou domesticar a
maioria dos outros seres vivos (...); a posse da linguagem e do pensamento
racional (Sófocles insiste em que a linguagem foi inventada pelos próprios
seres humanos para se comunicarem entre si, não lhes vem de fora como presente
de nenhuma divindade); (...) e, sobretudo, a faculdade de utilizar bem ou mal
tantas destrezas (o que supõe previamente disposição para distinguir o bem e o
mal nas ações ou propósitos, assim como a capacidade de opção entre eles, ou
seja: a liberdade) (...). Antônio Gramsci é um filósofo que tem uma concepção
alinhada ao materialismo histórico-dialético. O texto a seguir, “O que é o
homem”, encontra-se na obra: Concepção Dialética da História, 1995. “Que é o
Homem? É esta a primeira e principal pergunta da filosofia. Como respondê-la? A
definição pode ser encontrada no próprio homem, isto é, em cada homem singular.
Mas ela é exata? Em cada homem singular, pode-se encontrar o que é cada “homem
singular”. Mas não nos interessa o que é cada homem singular, problema que
significa, ademais, o que é cada homem singular em cada momento singular”. Aqui,
Gramsci quer dizer que a pergunta filosófica sobre o ser humano não é uma
pergunta sobre as características de cada pessoa em particular, de cada homem
singular, e sim sobre o que seria uma ideia geral de ser humano. O que define o
Humano? Gramsci: “Deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas
(um processo), nas quais, se a individualidade tem a máxima importância, não é
todavia o único elemento a ser considerado” (...). “A humanidade que se reflete
em cada individualidade é composta de diversos elementos: 1) o indivíduo; 2) os
outros homens; 3) a natureza. Mas o segundo e o terceiro elementos não são tão
simples quanto poderia parecer. O indivíduo não entra em relação com os outros
homens por justaposição, mas organicamente, isto é, na medida em que passa a
fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos. Desta forma, o
homem não entra em relações com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele
mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica. E mais:
estas relações não são mecânicas. São ativas e conscientes, ou seja,
correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o
homem individual. Daí ser possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se
modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do
qual ele é o ponto central”. (...) Gramsci diz que se busca uma ideia geral do
que seja o homem. Uma abstração, diz ele. Abstrações são generalizações. Os
conceitos são abstrações. São ideias gerais. Por exemplo, o conceito de árvore
é uma ideia geral que reúne nela todas as árvores, ou, as árvores em geral.
Gramsci, aí, faz uma pergunta intrigante: estas ideias gerais, ou, as
abstrações são postas no ponto de partida, ou no ponto de chegada do pensamento
investigativo? Se, para definir o que é o homem – ou qualquer ser – colocamos a
abstração como ponto de partida, temos já uma posição que ele denomina de
“metafísica” que é outra denominação para as posições que denominamos nos
textos anteriores de “essencialistas” ou de idealistas. E se colocadas no ponto
de chegada? Nesse caso temos um resultado de compreensão a partir da realidade
histórica que nos dá elementos para construirmos uma ideia geral sobre o ser
humano (...). O ser humano, ou a ‘natureza humana’, para Gramsci, partindo do
que se verifica historicamente, é construída pelos próprios seres humanos nas
relações que eles estabelecem com a natureza e entre si. O ser humano é ‘o
conjunto das relações sociais’, ou seja, ele é o que as interações sociais
fazem dele (...). Edgar Morin é um pensador de nossos dias e vive na França. Na
obra “O Método 5: a humanidade da humanidade; a identidade humana” (2003),
expressa suas preocupações e seu pensamento a respeito do ser humano. Ele o faz
em outras obras também, pois, como diz “permanecemos um mistério para nós
mesmos” (idem, p. 16). Para enfrentar este mistério, não nos bastam ciências
desligadas umas das outras, ainda que aprofundem estudos especializados sobre
aspectos importantes do humano. Nem é suficiente a reflexão filosófica quando
se fecha em si mesma sem dialogar com estas ciências e com as artes (...).
Morin propõe que sejam integrados os saberes que advêm das artes, pois, “a
literatura, a poesia e as artes não são apenas meios de expressão estética, mas
também meios de conhecimento” (Idem, p. 17). É preciso que os seres humanos se
olhem interiormente, através da introspecção (Idem, p. 17-18). É uma grande e
nada simples tarefa. Uma tarefa complexa por todas as dificuldades que encerra
e por todas as variáveis que inclui. [Para Morin]: “O humano é um ser a um só
tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade
original. É super e hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as
potencialidades da vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades
egocêntricas e altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e
na embriaguez, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos, e é nesta
hipervitalidade que o Homo Sapiens é também o Homo Demens. O homem é, portanto,
um ser plenamente biológico, mas, se não dispusesse plenamente da cultura,
seria um primata do mais baixo nível (...). O homem somente se realiza
plenamente como ser humano pela cultura e na cultura” (Idem, p. 52). [Morin] diz,
também, que o ser humano é um ser complexo, isto é, com múltiplas
características que inclusive são antagônicas porque são contrárias entre si e
estão o tempo todo em nós, complementando-se umas às outras. Nas suas palavras:
“Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais. Tudo isso
constitui o estofo propriamente humano. O ser humano é um ser racional e
irracional, capaz de medida e de desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável.
Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e
calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser
de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário
e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer
nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é
possuído pelos deuses e pelas ideias, mas que duvida dos deuses e critica as
ideias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de
quimeras” (2000, p. 59). Daí dizer Morin que o ser humano é Sapiens/demens, isto é, racional e, ao
mesmo tempo, não racional, com ausência, muitas vezes, de uma mente pensante
deixando-se levar por impulsos e desejos (...). Kant, no livro Antropologia de
um ponto de vista pragmático (2006), diz algo semelhante ao que diz Morin,
apontando que em nós há o germe da discórdia e o da concórdia:
“o
característico da espécie humana (...) é que a natureza pôs nela o germe da
discórdia e quis que a sua própria razão tirasse dessa discórdia a concórdia,
ou ao menos a constante aproximação dela, esta última sendo, com efeito, na
ideia o fim, embora de fato aquela primeira (a discórdia) seja, no plano da
natureza, o meio de uma sabedoria suprema, imperscrutável para nós: realizar o
aperfeiçoamento do ser humano mediante cultura progressiva, ainda que com muito
sacrifício da alegria de viver” (2006, p. ). Para Kant, a Razão Humana é o
grande trunfo para que a concórdia seja alcançada, vencendo o germe da
discórdia. Kant é um racionalista e, para ele, a educação é o caminho para o
desenvolvimento dela nas pessoas. Para Morin, não haverá nunca uma “vitória” da
racionalidade, mas ela deve preponderar como guiadora da realização humana.
Para Morin, como para Kant, como para muitos pensadores, não é nada fácil
entender e compreender o ser humano. E não é nada fácil ser um ser humano bom.
Mas, o que seria ser um ser humano bom? Esta talvez seja a reflexão mais
importante que todos devemos fazer. Principalmente os educadores, que têm como
finalidade fundamental de seu trabalho a formação de pessoas boas para uma vida
boa numa sociedade boa.
3.
Dermeval
Saviani. A filosofia na formação do
educador. http://www.scribd.com/doc/7298667/Demerval-Saviani-Do-Senso-Comum-Cons-Ciencia-Filosofica
Em
que se baseia essa importância concedida à Filosofia? Teria ela bases reais ou
seria mero fruto da tradição? Será que o educador precisa realmente da
filosofia? Que é que determina essa necessidade? Em outros termos: que é que
leva o educador a filosofar? (...). Com efeito, todos e cada um de nós nos
descobrimos existindo no mundo (existência que é agir, sentir, pensar). Tal
existência transcorre normalmente, espontaneamente, até que algo interrompe o
seu curso, interfere no processo alterando a sua sequência natural. Aí, então,
o homem é levado, é obrigado mesmo, a se deter e examinar, procurar descobrir o
que é esse algo. E é a partir desse momento que ele começa a filosofar. O ponto
de partida da filosofia é, pois, esse algo a que damos o nome de problema. Eis,
pois, o objeto da filosofia, aquilo de que trata a filosofia, aquilo que leva o
homem a filosofar: são os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua
existência.
1. NOÇÃO DE
PROBLEMA
1.1. Os usos correntes
da palavra “problema”
Uma
questão, em si, não é suficiente para caracterizar o significado da palavra
problema. Isto porque uma questão pode comportar (e o comporta com frequência)
resposta já conhecida. E quando a resposta é desconhecida? Estaríamos aí diante
de um problema? Aqui, porém, nós já estamos abordando uma segunda forma do uso
comum e corrente da palavra. Trata-se do problema como não-saber (...). De
acordo com esta acepção, problema significa tudo aquilo que se desconhece. Ou,
como dizem os dicionários, "coisa inexplicável, incompreensível" (cf.
Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol. IV verbete
problema, Ed. Delta). Levada ao extremo, tal interpretação acaba por
identificar o termo problema com mistério, enigma (o que também pode ser
comprovado numa consulta aos dicionários). No entanto, ainda aqui, o fato de
desconhecermos algo, a circunstância de não sabermos a resposta a determinada
questão, não é suficiente para caracterizar o problema (...). E quando o não-saber
é levado a um grau extremo, implicando a impossibilidade absoluta do saber,
configura-se, como já se disse, o mistério. Mistério, porém, não é sinônimo de
problema. É, ao contrário e frequentemente, a solução do problema, e, quiçá, de
todos os problemas. Dá prova disso a experiência religiosa. A atitude de fé
implica a aceitação do mistério. O homem de fé vive da confiança no
desconhecido ou, melhor dizendo, no incognoscível. Este é a fonte da qual brota
a solução para todos os problemas. Em suma, as coisas que nós ignoramos são
muitas e nós sabemos disso. Todavia, este fato, como também a consciência deste
fato, ou mesmo, a aceitação da existência de fenômenos que ultrapassam
irredutivelmente e de modo absoluto a nossa capacidade de conhecimento, nada
disso é suficiente para caracterizar o significado essencial que a palavra
problema encerra.
1.2. Necessidade
de se recuperar a problematicidade do “problema”
O
uso comum e corrente da palavra problema acaba por nos conduzir à seguinte
conclusão, aparentemente incongruente: “o problema não é problemático” (...). captar
a verdadeira concreticidade não é outra coisa senão captar a essência. Não se
trata, porém, de algo subsistente em si e por si que esteja oculto por detrás
da cortina dos fenômenos. A essência é um produto do modo pelo qual o homem
produz sua própria existência. Quando o homem considera as manifestações de sua
própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do
processo que as produziu, ele está vivendo no mundo da
"pseudoconcreticidade". Ele toma como essência aquilo que é apenas
fenômeno, isto é, aquilo que é apenas manifestação da essência (...). Ele toma
por problema aquilo que é apenas manifestação do problema (...). Qual é, então,
a essência do problema? (...) O conceito de necessidade é fundamental para se
entender o significado essencial da palavra problema. Trata-se, pois, de algo
muito simples, embora frequentemente ignorado. A essência do problema é a
necessidade (...). Assim, uma questão, em si, não caracteriza o problema, nem
mesmo aquela cuja resposta é desconhecida; mas uma questão cuja resposta se
desconhece e se necessita conhecer; eis aí um problema. Algo que eu não sei não
é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me,
então, diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário
transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dúvida que não pode
deixar de ser dissipada são situações que se configuram como verdadeiramente
problemáticas (...). A verdadeira compreensão do conceito de problema supõe,
como já foi dito, a necessidade. Esta só pode existir se ascender ao plano
consciente, ou seja, se for sentida pelo homem como tal (aspecto subjetivo);
há, porém, circunstâncias concretas que objetivizam a necessidade sentida,
tornando possível, de um lado, avaliar o seu caráter real ou suposto (fictício)
e, de outro, prover os meios de satisfazê-la. Diríamos, pois, que o conceito de
problema implica tanto a conscientização de uma situação de necessidade
(aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da necessidade (aspecto
objetivo) (...). Suponhamos que as 7.100 ilhas do arquipélago das Filipinas
tenham, cada uma, um nome determinado. Suponhamos, ainda, que um professor de
Geografia exija de seus alunos o conhecimento de todos esses nomes. Os alunos
estarão, então, diante de um problema: como conseguir a aprovação em face dessa
exigência? Uma vez que eles não necessitam saber os nomes das ilhas (isso não é
problema), mas precisam ser aprovados, partirão em busca dos artifícios (“pseudossoluções”)
que lhes garantam a aprovação. Está aberto o caminho para a fraude, para a
impostura (...). Em suma: problema, apesar do desgaste determinado pelo uso
excessivo do termo, possui um sentido profundamente vital e altamente dramático
para a existência humana, pois indica uma situação de impasse. Trata-se de uma
necessidade que se impõe objetivamente e é assumida subjetivamente. O
afrontamento, pelo homem, dos problemas que a realidade apresenta, eis aí, o que
é a filosofia. Isto significa, então, que a filosofia não se caracteriza por um
conteúdo específico, mas ela é, fundamentalmente, uma atitude; uma atitude que
o homem toma perante a realidade. Ao desafio da realidade, representado pelo
problema, o homem responde com a reflexão.
2. NOÇÃO DE
REFLEXÃO
E
que significa reflexão? A palavra nos vem do verbo latino reflectere que significa “voltar atrás”. É, pois, um “re-pensar”,
ou seja, um pensamento em segundo grau. Poderíamos dizer: se toda reflexão é
pensamento, nem todo pensamento é reflexão (...). Refletir é o ato de retomar,
reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de
significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. E é
isto o filosofar.
Até
aqui a atitude filosófica parece bastante simples, pois uma vez que ela é uma
reflexão sobre os problemas e uma vez que todos e cada homem têm problemas
inevitavelmente, segue-se que cada homem é naturalmente levado a refletir,
portanto, a filosofar.
3. As exigências
da reflexão filosófica
A
filosofia é uma reflexão sobre os problemas que a realidade apresenta,
entretanto, ela não é qualquer tipo de reflexão. Para que uma reflexão possa
ser adjetivada de filosófica, é preciso que se satisfaça uma série de exigências,
resumidas em três requisitos: a radicalidade, o rigor e a globalidade (...). Radical:
em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais,
entendida a palavra radical no seu sentido mais próprio e imediato: é preciso
que se vá até às raízes da questão, até seus fundamentos. Exige-se que se opere
uma reflexão em profundidade. Rigorosa: em segundo lugar e como que para
garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja,
sistematicamente, segundo métodos determinados, colocando-se em questão as
conclusões da sabedoria popular e as generalizações apressadas que a ciência
pode ensejar. De conjunto: em terceiro lugar, o problema não pode ser
examinado de modo parcial, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o
aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. É
neste ponto que a filosofia se distingue da ciência: ao contrário da ciência, a
filosofia não tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da
realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja
onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ação é o problema enquanto não se
sabe ainda onde ele está; por isso se diz que a filosofia é busca. E é nesse
sentido também que se pode dizer que a filosofia abre caminho para a ciência;
através da reflexão, ela localiza o problema tornando possível a sua
delimitação na área de tal ou qual ciência que pode então analisá-lo e, quiçá,
solucioná-lo. Além disso, enquanto a ciência isola o seu aspecto do contexto e
o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se às vezes apenas a uma
parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em função do conjunto
(...). Por fim, é necessária uma observação sobre a expressão bastante
difundida, "problema filosófico". Cabe perguntar: "existem
problemas que não são filosóficos?" Na verdade, um problema, em si, não é
filosófico, nem científico, artístico ou religioso. A atitude que o homem toma
perante os problemas é que é filosófica, científica, artística ou religiosa ou
de mero bom-senso. A expressão que estamos analisando é resultante, pois, do
uso corrente da palavra problema (já abordado) que a dá como sinônimo de
questão, tema, assunto. Aqueles assuntos, que são objeto de estudo dos
cientistas, por exemplo, são denominados "problemas científicos". Daí
as derivações "problemas sociológicos", "problemas
psicológicos", "problemas químicos", etc. Mas como aceitar essa
interpretação no caso da filosofia que, como foi dito antes, não tem objeto
determinado? Como aceitá-la, se qualquer assunto pode ser objeto de reflexão
filosófica? O uso comum e corrente tem se pautado, então, pelo seguinte
paralelismo: assim como "problemas científicos" são aquelas questões
de que se ocupam os cientistas, "problemas filosóficos" não são outra
coisa senão aquelas questões de que se têm ocupado os filósofos. Não se deve
esquecer, porém, que não é porque os filósofos se ocuparam com tais assuntos
que eles são problemas; mas, ao contrário: é porque eles são (ou foram) problemas
que os filósofos se ocuparam e se preocuparam com eles (...). [Tratar-se-iam,]
por conseguinte, de problemas que põem em tela, de imediato e de modo
inconteste, a necessidade da filosofia. Estaria justificado, nessas
circunstâncias, o uso da expressão "problema filosófico".
4. NOÇÃO DE
FILOSOFIA
Esclarecendo
o significado essencial de problema; explicitados a noção de reflexão e os
requisitos fundamentais para que ela seja adjetivada de filosófica, podemos,
finalmente, conceituar a filosofia como uma reflexão (radical, rigorosa e de
conjunto) sobre os problemas que a realidade apresenta. A partir daí, é fácil
concluir a respeito do significado da expressão "Filosofia da
Educação". Esta não seria outra coisa senão uma reflexão (radical,
rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional
apresenta.
5. NOÇÃO DO “FILOSOFIA
DE VIDA”
Mas
será que isso nos diz alguma coisa? Quando ouvimos falar em filosofia da
educação não me parece que ocorra em nosso espírito a ideia acima. Com efeito,
ouvimos falar em Filosofia da Educação da Escola Nova, Filosofia da Educação da
Escola Tradicional, Filosofia da Educação do Governo de São Paulo, Filosofia da
Educação da Igreja Católica, etc.; e sabemos que não se trata aí da reflexão da
Igreja Católica, dos educadores da Escola Nova ou do Governo de São Paulo sobre
os problemas educacionais; a palavra filosofia refere-se aí à orientação, aos
princípios e normas que regem aquelas entidades. Tal orientação pode ou não ser
consequência da reflexão. Com efeito, a nossa ação segue sempre certa
orientação; a todos momentos estamos fazendo escolhas, mas isso não significa
que estamos sempre refletindo; a ação não pressupõe necessariamente a reflexão;
podemos agir sem refletir (embora não nos seja possível agir sem pensar). Neste
caso, nós decidimos, fazemos escolhas espontaneamente, seguindo os padrões, a
orientação que o próprio meio nos impõe. É assim que nós escolhemos nossos
clubes preferidos, nossas amizades; é assim que os pais escolhem o tipo de
escola para os seus filhos, colocando-os em colégio de padres (ou freiras) ou
em colégio do Estado; é assim também que certos professores elaboram o programa
de suas cadeiras (vendo o que os outros costumam transmitir, transcrevendo os
itens do índice de certos livros didáticos, etc.); e é assim, ainda, que se
fundam certas escolas ou que o Governo toma certas medidas. Nessas situações
nós não temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de
outro modo. Tudo ocorre normalmente, naturalmente, espontaneamente, sem
problemas. Proponho que se chame a esse tipo de orientação "filosofia de
vida" (...). Esta noção de "filosofia de vida" corresponde, na
terminologia gramsciana, ao conceito de "senso comum". Cf. GRAMSCI,
A. - Quaderni del Cárcere, especialmente o caderno 10 (na tradução brasileira,
ver, Concepção Dialética da Historio, em especial a Parte I).
6. NOÇÃO DE “IDEOLOGIA”
À
medida, porém, que a reflexão prossegue, as coisas começam a ficar mais claras
e a resposta vai se delineando. Estrutura-se então uma orientação, princípios
são estabelecidos, objetivos são definidos e a ação toma rumos novos,
tornando-se compreensível, fundamentada, mais coerente. Note-se que também aqui
se trata de princípios e normas que orientam a nossa ação. Mas aqui nós temos
consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de outro modo.
Contrapondo-se à "filosofia de vida", proponho que se chame a esse
segundo tipo de orientação, "ideologia".
7. ESQUEMATIZAÇÃO
DA DIALÉTICA “AÇÃO-PROBLEMA-REFLEXÃO-AÇÃO”
Podemos,
pois, para facilitar a compreensão, formular o seguinte diagrama:
1.
Ação (fundada na filosofia de vida) suscita 2. Problema (exige reflexão: a
filosofia) que leva à 3. Ideologia (consequência da reflexão) que acarreta 4.
Ação (fundada na ideologia). Não se trata, porém, de uma sequência lógica ou
cronológica; é uma sequência dialética. Portanto, não se age primeiro, depois
se reflete, depois se organiza a ação e por fim age-se novamente. Trata-se de
um processo em que esses momentos se interpenetram, desenrolando o fio da
existência humana na sua totalidade. E como não existe reflexão total, a ação
trará sempre novos problemas que estarão sempre exigindo a reflexão; por isso,
a filosofia é sempre necessária e a ideologia será sempre parcial, fragmentária
e superável. Assim, poderíamos
continuar o diagrama anterior, da seguinte forma: 1. Ação (fundada na
ideologia) suscita 2. Novos Problemas (exigem reflexão: a filosofia) que levam
3. Reformulação da ideologia (organização da ação) que acarreta 4. Reformulação
da ação (fundada na ideologia reformulada).
8. NOÇÃO DE
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Portanto,
o que conhecemos normalmente pelo nome de filosofia da educação não o é
propriamente, mas identifica-se (de acordo com a terminologia proposta) ora com
a "filosofia de vida", ora com a "ideologia". Acreditamos,
porém, que a filosofia da educação só será mesmo indispensável à formação do
educador; se ela for encarada, tal como estamos propondo, como uma reflexão
(radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade
educacional apresenta. Podemos, enfim, responder à pergunta colocada no início:
que é que leva o educador a filosofar? O que leva o educador a filosofar são os
problemas (entendido esse termo com o significado que lhe foi consignado) que
ele encontra ao realizar a tarefa educativa (...). Assim, a tarefa da Filosofia
da Educação será oferecer aos educadores um método de reflexão que lhes permita
encarar os problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e
encaminhando a solução de questões tais como: o conflito entre "filosofia
de vida" e "ideologia" na atividade do educador; a necessidade
da opção ideológica e suas implicações; o caráter parcial, fragmentário e
superável das ideologias e o conflito entre diferentes ideologias; a possibilidade,
legitimidade, valor e limites da educação; a relação entre meios e fins na
educação (como usar meios velhos em função de objetivos novos?); a relação
entre teoria e prática (como a teoria pode dinamizar ou cristalizar a prática
educacional?); é possível redefinir objetivos para a educação brasileira? Quais
os condicionamentos da atividade educacional? Em que medida é possível
superá-los e em que medida é preciso contar com eles? O elenco de questões
acima mencionado é apenas um exemplo do caráter problemático da atividade
educacional, o que explica a importância e a necessidade da reflexão filosófica
para o educador.
9. CONCLUSÃO
Assim
encarada, a filosofia da educação não terá como função fixar "a
priori" princípios e objetivos para a educação; também não se reduzirá a
uma teoria geral da educação enquanto sistematização dos seus resultados. Sua
função será acompanhar reflexiva e criticamente a atividade educacional de modo
a explicitar os seus fundamentos, esclarecer a tarefa e a contribuição das diversas
disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas. Com
isso, a ação pedagógica resultará mais coerente, mais lúcida, mais justa; mais
humana, enfim.
4.
Flávia
da Silva Ferreira Asbahr & Carolina Picchetti Nascimento. Criança não é Manga, não Amadurece:
Conceito de Maturação na Teoria Histórico-Cultural. Psicologia: Ciência e
Profissão, 1023. 33 (2), 414-427
O
enfoque deste artigo está no conceito de maturação e em como tal conceito tem
permeado a prática pedagógica.
Teorias sobre o
desenvolvimento e o conceito de maturação
A
explicação sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento baseadas no
conceito de maturação expressa a aparência dessa relação e, ao mesmo tempo, uma
profunda biologização desses processos (...). a relação entre desenvolvimento e
aprendizagem é uma questão central para a prática pedagógica, sobretudo porque
nos remete às questões relacionadas a o que ensinar (os conteúdos), como
ensinar (o modo de organizar o ensino) e porque ensinar (a finalidade da
educação escolar) (...). O estudo do desenvolvimento humano está voltado, entre
outras coisas, para explicar os fatores que influenciam ou que determinam as
mudanças no comportamento do indivíduo ao longo do tempo (...). Vigotski é um
dos autores que analisa as concepções de desenvolvimento e aprendizagem
subjacentes a algumas teorias psicológicas de sua época e suas possíveis
implicações educacionais. O autor divide as teorias que explicam a relação
entre desenvolvimento e aprendizagem em três categorias fundamentais – a
concepção inatista, a concepção empirista/ambientalista e a concepção dualista
–, reconhece que, nessas concepções, há uma compreensão maturacionista do
desenvolvimento e critica tais abordagens (...). Vigotski não só analisou tais
teorias como também as criticou, principalmente no que se refere às suas
implicações pedagógicas. Segundo tais teorias, a escola só pode fazer seu
trabalho depois que a criança atingir determinado nível de maturação (...). Até
determinado momento da história da ciência, particularmente com relação às
teorias que procuravam explicar o desenvolvimento humano, a teoria inatista ou
pré-formista aparecia como a visão hegemônica (...). Para os adeptos da teoria
inatista, o desenvolvimento humano caracteriza-se, fundamentalmente, pelo seu
potencial intrínseco (hereditário), com pouca ou nenhuma influência do meio. Os
processos de crescimento físico e maturacional – em última análise, o organismo
– determinam incondicionalmente o processo de desenvolvimento. Assim, o estado
de desenvolvimento da criança de dez anos de idade seria produto direto do seu
estado maturacional, isto é, de suas forças internas (...). Nesse sentido, o desenvolvimento humano
resumir-se-ia a um processo de amadurecimento meramente biológico, movido pelas
forças e pelas transformações internas do organismo (...). Não existindo mais
uma defesa aberta das ideias dessa teoria (ou ao menos não hegemonicamente),
resta sabermos em que essa concepção influencia ainda hoje nosso pensamento ou
nossos “hábitos de pensamento”, conforme Vigotski (1995). A primeira delas, um
tanto quanto influente nas práticas educacionais, é a manutenção da crença de
um certo desenvolvimento natural da criança, da crença da existência de uma
força intrínseca à criança (processos maturacionais), que saberia ao certo para
onde conduzi-la no seu desenvolvimento (...). A segunda forma de influência do
pensamento inatista nos dias de hoje relaciona-se à prática de investigação
científica e refere-se à redução do desenvolvimento humano a um processo
puramente quantitativo. O indivíduo é reduzido, na teoria inatista, a um ser
biológico, cujas características já estão dadas desde o nascimento, restando
apenas que elas sejam desabrochadas (...). A segunda forma de influência do
pensamento inatista nos dias de hoje relaciona-se à prática de investigação
científica e refere-se à redução do desenvolvimento humano a um processo
puramente quantitativo. O indivíduo é reduzido, na teoria inatista, a um ser
biológico, cujas características já estão dadas desde o nascimento, restando
apenas que elas sejam desabrochadas (...). Nessa visão, o estudante reúne ou
não as condições ou aptidões para aprender, de acordo com as características
hereditárias que possui. Como negação da teoria inatista, a teoria empirista/ambientalista
do desenvolvimento humano procurou deslocar todas as explicações dadas para a
formação do ser humano (que residiam no organismo) para o meio. Para essa
teoria, todo o conhecimento dos seres humanos provém de sua experiência no meio
físico e social ao qual ele está inserido, meio esse que provoca mudanças no
comportamento do indivíduo. Esse processo caracterizaria o desenvolvimento,
para essa teoria. Trata-se, assim, de uma inversão, dentro da mesma concepção
determinista do desenvolvimento humano; os ambientalistas negam o determinismo
biológico dado pela teoria inatista para afirmarem o determinismo ambiental no
desenvolvimento do homem. E, justamente por ser uma teoria determinista do
desenvolvimento, consideramos que seja, também, uma teoria reducionista,
incapaz, portanto, de explicar em sua totalidade o desenvolvimento
especificamente humano. De acordo com essa concepção, a educação era vista como
mero processo de transmissão de conteúdos, transmitidos pelo professor e
recebido pelos alunos, que teriam seu comportamento moldado de acordo com esse
processo, ou seja, o meio determinaria inteiramente o desenvolvimento do homem;
os seres humanos seriam uma cópia das condições externas. O terceiro grupo
teórico busca conciliar as concepções apresentadas anteriormente, fazendo com
que coexistam. Trata-se da concepção dualista de desenvolvimento, que considera
a existência, por um lado, do processo de maturação que depende do
desenvolvimento neurológico, e, de outro, da aprendizagem considerada em si mesma
como processo de desenvolvimento (...). O desenvolvimento, porém, continua expressando
um âmbito mais amplo do que a aprendizagem (...). Vigotski procura uma nova
solução para o problema da relação desenvolvimento e aprendizagem que supere as
concepções maturacionistas e ambientalistas presentes nas teorias analisadas.
Uma psicologia verdadeiramente histórica e que supere esses determinismos
(biológicos e ambientalistas) nasce juntamente à tentativa de elaborar uma psicologia
fundamentada no materialismo histórico-dialético: a teoria histórico-cultural.
A concepção de
desenvolvimento na teoria histórico-cultural. Ou, por que esperar a maturação
não nos permite esperar que a criança se desenvolva?
A
teoria histórico-cultural não é uma metodologia nova ou um conjunto de técnicas
para auxiliar a prática pedagógica, mas é, fundamentalmente, uma forma de
entender o homem naquilo que ele é e naquilo que ele pode vir a ser. Trata-se,
em essência, da elaboração das questões psicológicas sobre o que se desenvolve
no homem e como se desenvolve, a partir da explicitação e da defesa de uma
certa concepção de mundo e de homem: ambos essencialmente históricos (...). O
primeiro aspecto a ser realçado da concepção de desenvolvimento da teoria
histórico-cultural é a compreensão de que a criança não é um adulto em
miniatura. Há uma constituição infantil específica, tanto física como
psicológica, que diferencia adultos e crianças não apenas quantitativamente,
mas principalmente qualitativamente. Além disso, o desenvolvimento infantil não
é linear, causado por acumulações sucessivas. Há metamorfoses, revoluções
radicais no processo de desenvolvimento pelas quais passa a criança que irão
garantir sua passagem de ser biológico para ser cultural. Essas metamorfoses não
são produzidas biologicamente, pelo curso natural do desenvolvimento, mas pela
inserção da criança no mundo histórico-cultural: “Uma vez integrada num
ambiente adequado, a criança sofre rápidas transformações e alterações: esse é
um processo surpreendentemente rápido, porque o ambiente sociocultural pré-existente
estimula na criança as formas necessárias de adaptação, há muito tempo criadas
nos adultos que a rodeiam” (Vigotski & Luria, 1993, p.180). Assim, entender
o que seja o desenvolvimento infantil na perspectiva da teoria histórico-cultural
implica assumir que: a) existe uma linha histórico-cultural do desenvolvimento (Vigotski,
1995) que se diferencia de sua linha biológica, b) para desenvolver-se culturalmente,
é preciso apropriar-se dos significados historicamente produzidos nas atividades
humanas (Leontiev, 1983) (...). O aspecto biológico é o ponto de partida do
desenvolvimento humano, mas altera-se no decorrer do processo de apropriação da
cultura pelo sujeito (...). A linha biológica do desenvolvimento humano
caracteriza-se, sobretudo, por uma relação direta do homem com o mundo, por
comportamentos espontâneos ou imediatos, dos quais ele não tem consciência e,
assim, não pode controlar plenamente. O segundo tipo de desenvolvimento
caracteriza-se pelo surgimento de novas formas de conduta – condutas mediadas
–, fruto das conquistas culturais que o homem foi alcançando em suas
atividades. Com essas formas culturais de conduta, o homem pôde criar seus
órgãos artificiais (instrumentos e signos) e formar uma existência consciente
ou uma existência para si (Heller, 1991) (...). Quando dizemos que a criança
não está madura, nós a comparamos com um adulto e tomamos seu desenvolvimento
como parâmetro. Nesse processo, esquecemo-nos das diferenças qualitativas entre
o desenvolvimento infantil e o adulto, focando-nos apenas nas diferenças
quantitativas e esquecendo-nos que as novas qualidades do adulto não surgiram
nele pela maturação, mas pelo permanente processo de apropriação da cultura
humana (...). Para estabelecer a verdadeira diferença entre os instrumentos
humanos e os instrumentos nos animais, devemos analisar, de acordo com Leontiev
(1978), a atividade em que eles tomam parte. Para os animais, a sua atividade
confunde-se sempre com o seu motivo biológico, e os instrumentos encerram, em
si, uma possibilidade natural de realizar a sua atividade instintiva. Para o
homem, por outro lado, o instrumento possibilita a criação e a apropriação de
novas formas de sua atividade no mundo, com os outros e consigo mesmo (...). “Na
vara usada pelo macaco, já podemos ver o protótipo não só de um instrumento em
geral, mas de toda uma série de instrumentos diferenciados: pás, lanças, e
assim por diante. Porém, mesmo no caso dos macacos que, no mundo animal, se
encontram no ponto mais elevado quanto ao uso de instrumentos, esses
instrumentos ainda não desempenham papel decisivo na luta pela sobrevivência.
Na história do desenvolvimento do macaco, ainda não houve aquele salto para
diante que constituiu o processo de transformação do macaco em homem, e isso,
do ponto de vista que nos interessa, termina no fato de que os instrumentos de
trabalho se tornam a base de adaptação à natureza. No processo de
desenvolvimento do macaco, esse salto para diante teve início, mas não se completou.
A fim de que se complete, é preciso que se desenvolva uma nova forma especial
de adaptação à natureza, estranha aos macacos – ou seja, o trabalho (Vigotski
& Luria, 1996, p. 88) (...). A Psicologia, como ciência, precisa sair do
cativeiro da Biologia e passar ao terreno da Psicologia histórica humana
(Vigotski, 1995, p.132); a maturação, portanto, compreendida como maturação
biológica, não nos ajuda a compreender e a explicar o desenvolvimento humano
(...). Segundo os pressupostos da teoria histórico-cultural, a transformação da
memória, bem como das demais funções psicológicas superiores, não pode ser
entendida como simples maturação estrutural, mas sim, como metamorfose cultural
decorrente do processo de reequipamento cultural possibilitado pelo conteúdo
das relações interpessoais apropriadas pelos indivíduos. A transformação da
memória relaciona-se intimamente com a transformação das outras funções
psicológicas superiores, dando ao desenvolvimento psicológico uma dimensão
muito mais cultural do que natural. Nesse sentido, deve-se ressaltar que o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores ocorre a partir de
mediações culturais. Tal compreensão desloca o foco das dificuldades da
aprendizagem do nível individual para o social, e coloca o problema da
qualidade das mediações culturais presentes na vida da criança (Facci, Eidt,
& Tuleski, 2006). “Verifica-se que as causas do atraso mental não podem ser
explicadas somente a partir de anamneses, entrevistas e testagens
psicométricas, ou seja, com instrumentos que buscam as causas do não aprender
na criança e em sua família, mas essa análise deve ser ampliada para a
atividade de ensino e de aprendizagem, especialmente no que se refere à
qualidade do conteúdo ministrado, à relação professor-aluno, à metodologia de
ensino, à adequação de currículo, ao sistema de avaliação adotado, em suma, ao
acesso da criança ao mundo dos instrumentos e signos culturais” (2006, p. 111)
(...). Desse modo, o educador jamais pode ser o mediador do processo de ensino
e aprendizagem, tampouco o facilitador, posto que ele mesmo é um dos polos da
relação a ser mediada: professor-aluno, ensino-aprendizagem, mediato-imediato.
O educador, portanto, é sujeito do processo de ensino e de aprendizagem,
sujeito que organiza a atividade de ensino, esta sim, assumindo o papel de
mediação entre os dois polos da relação, ou seja, buscando estabelecer a
relação entre o imediato (os conhecimentos empíricos que os educandos trazem de
suas vidas) e o mediato (os conhecimentos teóricos que o professor quer ensinar
para os estudantes).
Considerações
finais
Na
perspectiva teórica assumida neste trabalho, a escola tem papel central no
desenvolvimento de seus estudantes, na medida em que cria condições para que se
apropriem –através de mediações culturais planejadas e intencionais – dos
conhecimentos acumulados pela humanidade, conhecimentos esses que encarnam as
novas possibilidades de conduta das crianças, como a atenção voluntária, a
memória lógica, o pensamento teórico, a capacidade de leitura e escrita, etc.
Essas funções ou condutas estão presentes para cada indivíduo apenas como uma
potencialidade, e estão presentes externamente aos indivíduos, isto é, sob a
forma de objetos e de relações externas (...). os conteúdos escolares devem ser
organizados de maneira a formar na criança aquilo que ainda não está formado,
elevando-a a níveis superiores de desenvolvimento. Cabe ao ensino orientado
produzir na criança neoformações psíquicas, isto é, produzir novas necessidades
e motivos que irão paulatinamente modificando a atividade principal dos alunos
e reestruturando os processos psíquicos particulares (Davidov, 1988). Tal
concepção de desenvolvimento reconfigura o papel da maturação no processo de
aprendizagem e dá à educação escolar um papel central no desenvolvimento das
funções psicológicas superiores. Em um sentido oposto ao que vemos nas teorias
maturacionistas, não cabe à escola esperar que a criança amadureça. Ao
contrário, é seu dever criar condições para que a maturação se efetive.
5.
Marilena
de Souza Chauí. Ideologia e educação.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 1, p. 245-257, jan./mar. 2016.
Ideologia
De
modo sumário e para os fins que nos interessam aqui, poderíamos “resumir” a
noção de ideologia nas seguintes determinações: 1. Um corpus de representações
e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve
pensar, agir e sentir (...). 2. O corpus
assim constituído tem a finalidade de produzir uma universalidade imaginária,
pois, na realidade, apenas generaliza para toda a sociedade os interesses e o
ponto de vista particulares de uma classe: aquela que domina as relações
sociais (...). 3. A eficácia ideológica depende da interiorização do corpus
imaginário, de sua identificação com o próprio real e especialmente de sua
capacidade para permanecer invisível. Pode-se dizer que uma ideologia é
hegemônica quando não precisa mostrar-se, quando não necessita de signos
visíveis para se impor, mas flui espontaneamente como verdade igualmente aceita
por todos. 4. É nuclear, na ideologia, que ela possa representar o real e a
prática social através de uma lógica coerente. A coerência é obtida graças a
dois mecanismos: a lacuna e a “eternidade” (...). A lógica ideológica só pode
manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois,
sendo a “missão” da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma
ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria. 5. A
anterioridade do corpus, a universalização do particular, a interiorização do
imaginário como algo coletivo e comum e a coerência da lógica lacunar fazem com
que a ideologia seja uma lógica da dissimulação (da existência de classes
sociais contraditórias) e uma lógica da ocultação (da gênese da divisão social)
(...). Para que o trabalho do pensamento se realize, é preciso que a
experiência fale de si para poder voltar-se sobre si mesma e compreender-se. O
conhecimento tende a cristalizar-se no discurso sobre; o pensamento se esforça
para evitar essa tentação apaziguadora, pois quem já sabe, já viu e já disse
não precisa pensar, ver e dizer e, portanto, também nada precisa fazer. A
experiência é o que está, aqui e agora, pedindo para ser visto, falado, pensado
e feito.
Alguns temas para
discussão
a) Quem silencia o
discurso da educação?
Em
nossa sociedade, é tacitamente obedecida uma regra que designarei como a regra
da competência e cuja síntese poderia ser assim enunciada: não é qualquer um que
pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer
circunstância. Em outras palavras, o emissor, o receptor e o conteúdo da
mensagem, assim como a forma, o local e o tempo de sua transmissão dependem de
normas prévias que decidem a respeito de quem pode falar e ouvir, o que pode
ser dito e ouvido, onde e quando isso pode ser feito. A regra da competência
também decide de antemão, portanto, quais são os excluídos do circuito de
comunicação e de informação. Essa regra não só reafirma a divisão social do
trabalho como algo “natural”, mas sobretudo como “racional”, entendendo por
racionalidade a eficiência da realização ou execução de uma tarefa. E reafirma
também a separação entre os que sabem e os que “não sabem”, estimulando nestes
últimos o desejo de um acesso ao saber por intermédio da informação (isto é,
por meio do discurso sobre). A regra da competência nos permite indagar: quem
se julga competente para falar sobre a educação, isto é, sobre a escola como
forma de socialização? A resposta é óbvia: a burocracia estatal que, por
intermédio dos ministérios e das secretarias de educação, legisla, regulamenta
e controla o trabalho pedagógico. Há, portanto, um discurso do poder que se
pronuncia sobre a educação, definindo seu sentido, finalidade, forma e
conteúdo. Quem, portanto, está excluído do discurso educacional? Justamente
aqueles que poderiam falar da educação enquanto experiência que é sua: os
professores e os estudantes. Resta saber por que se tornou impossível o
discurso da educação (...). A regra da competência, somada ao mito da
racionalidade encarnada no taylorismo e na burocracia (com suas sequelas, isto
é, hierarquia, fragmentação, separação entre dirigentes e dirigidos), acrescida
dos padrões de organização e planejamento sob a forma “neutra” da
administração, silencia o discurso da educação, para que o poder fale sobre
ela. A educação não pode falar porque, se o fizer, obrigará ao reconhecimento
de sua existência singular ou específica articulada a outras singularidades que
diferenciam as relações sociais, de sorte que, de diferença em diferença,
acabaria levando ao reconhecimento das divisões sociais.
b) A noção de
maturidade e a confecção de currículos e programas de ensino
Aparentemente,
essa ideia encontra fundamento real e objetivo graças às pesquisas das ciências
biológicas e psicológicas. Todavia, se focalizarmos nossa atenção numa outra
noção, deixada no silêncio, poderemos desconfiar um pouco da cientificidade e
da neutralidade da noção de maturidade. Refiro-me à noção de imaturo. Quem, nas
sociedades ocidentais modernas, tem sido sistematicamente definido como
imaturo? A criança, a mulher, as “raças inferiores” (negros, índios e amarelos)
e o povo. Qual a consequência fundamental da imputação de imaturidade a essas
figuras? A legitimidade de dirigi-las e governá-las, isto é, de submetê-las.
Ora, se a noção de imaturidade é claramente política e ideológica, por que sua
contraface, isto é, a maturidade, haveria de ser científica (vale dizer, real e
verdadeira)? E, uma vez que programas e currículos são montados sobre essa
noção, não caberia analisá-la um pouco mais a fundo para que se pudesse
averiguar a quem serve e a que serve? Se fizermos falar o silêncio da
imaturidade, o discurso sobre a maturidade permanecerá intacto?
c) Escola e
comunidade
Que
se entende por comunidade numa sociedade de classes? Quem são os representantes
da comunidade junto à escola? Que são e quais os serviços que a escola deve
prestar à comunidade? Nas universidades, não há qualquer dificuldade para
responder a essas questões. Basta examinar a composição dos Conselhos
Universitários para verificar que os representantes da comunidade são os
membros do patronato e que os serviços à comunidade consistem em fornecer
determinados tipos de mão de obra às empresas. Mas, nas escolas de ensino
fundamental e médio, quem é a comunidade? (...). Quando, portanto, aceitamos os
termos da lei segundo a qual a escola recebe e presta serviço à comunidade, não
estaremos confundindo o bairro, a vila, a periferia, isto é, os agrupamentos,
com a comunidade? Mas o que há de ser uma comunidade assim definida? O que se
oculta sob ela? O que está sendo silenciado quando se fala sobre comunidade
numa sociedade de classes onde as condições objetivas da vida comunitária não
podem existir?
d) O critério da
autoavaliação
A
que e a quem serve uma pedagogia fundada no critério da autoavaliação que
escamoteia problemas metafísicos (a identidade consigo mesmo como conquista da
autonomia no interior da vida intersubjetiva), antropológicos (o papel da
cultura na criação dos símbolos de reconhecimento), sociológicos, políticos e
ideológicos (o exercício da dominação graças ao apagamento das diferenças de
classes pela universalidade ilusória atribuída à regra particular
interiorizada) e psicológicos (a autoavaliação como mecanismo de controle e
como instrumento de adaptação)? Não estaríamos aqui diante de uma das formas
mais sutis e eficazes de manipulação ideológica, onde a liberdade é definida
através de uma autonomia imaginária?
e) Os recursos
audiovisuais
Diante
dos recursos audiovisuais, poderíamos indagar: a quem interessa uma relação com
a cultura na forma do consumismo? A quem interessa a banalização e
simplificação da cultura? A quem interessa ocultar a dimensão do trabalho
cultural sob a ilusão da “criatividade”? A quem interessa que a educação seja
apenas mais um item da cultura de massa e da indústria cultural? Quem lucra, do
ponto de vista econômico, com a fabricação desses recursos? Quem lucra, social e
politicamente, com seu uso? A quem interessa que a democratização da cultura
seja sinônimo de massificação, de tal modo que o “direito igual de todos à
educação” se converta automaticamente na suposição de que, para ser um “direito
igual”, a educação deve reduzir-se à vulgarização dos conhecimentos através da
mídia. Assim como a autoavaliação inventa uma pseudoliberdade, o recurso
audiovisual tende a transformar a igualdade educacional em nivelamento cultural
pelo baixo nível dos conhecimentos transmitidos.
f) A dinâmica de
grupo
Quando
examinamos mais de perto as “teorias” acerca da dinâmica de grupo, tendemos a
desconfiar de seus resultados, ou melhor, podemos perceber que viabilizam
resultados opostos aos que eram esperados. Há pelo menos dois efeitos da dinâmica
de grupo que merecem atenção por parte dos pedagogos. O primeiro deles concerne
ao fato de que tal dinâmica tende a gerar uma forma nova e mais sutil de
dependência recíproca. De fato, ao abolir, em decorrência da força numérica do
grupo, a autoridade visível do professor, a dinâmica recria no interior do
próprio grupo autoridades invisíveis porque as relações têm a aparência de
serem paritárias, quando não o são. Surgem líderes e liderados (...). O segundo
efeito da dinâmica de grupo consiste em criar nos seus membros a expectativa de
ampliar para além do espaço grupal (no caso, espaço escolar e de classe) a
mesma experiência, o que, sendo impossível, gera frustração permanente, pois o
microcosmo artificial criado pela dinâmica de grupo não pode transformar-se em
macrocosmo social. A tendência, portanto, poderá ser a de tornar os membros do
grupo incapazes de enfrentar e resolver conflitos reais toda vez que o “modelo
do grupo” não puder ser aplicado, ou, então, torná-los apáticos e indiferentes
a tudo quanto ocorra “fora” do grupo. Assim, em lugar do espaço ser ampliado,
encontra-se reduzido pela dicotomia entre o “dentro” e o “fora” (...). não se
trata de eliminar uma forma de trabalho pedagógico que a experiência tem
revelado ser extremamente rica: refiro-me ao trabalho em grupo. Mas sua riqueza
advém justamente do fato de ser um trabalho, isto é, das relações entre os
membros do grupo estarem mediadas por uma tarefa comum, sendo ela o elemento
que une e diferencia os membros do grupo. Neste caso, já não estamos diante da
pura relação interpessoal em cujo interior a educação não só tende a tornar-se
psicoterapia ilusória, mas ainda pode servir para reproduzir e preparar os
estudantes para modelos de relações sociais desejadas pela ideologia
contemporânea (como, por exemplo, aquelas produzidas pelas “relações humanas”
nas empresas).
g) Educação como
formação e como conscientização
Em
geral, costuma-se opor educação como formação e educação como informação,
oposição que reaparece quando se distinguem aprendizagem e treinamento,
conscientização e pragmatismo, espírito crítico e autômatos. Aqueles que
privilegiam o polo formação/ aprendizagem/conscientização têm a esperança de
que a educação possa ser um instrumento de conhecimento e de transformação do
real, graças à sua compreensão crítica. Não podemos também ignorar o fato de
que tais oposições implicam uma outra, qual seja, entre uma visão humanista e
uma visão tecnocrática da educação. O que é “formar”? (...). Qual seria, então,
o risco ideológico da noção de conscientização? Em primeiro lugar, haveria o
risco de imaginar o aluno (e a classe social) como uma consciência latente ou
virtual, adormecida no seu ser em si e que o professor (ou a vanguarda) viria atualizar
ou despertar. Há o risco da atitude iluminista. Em segundo lugar, haveria o
risco de imaginar o aluno (e a classe social) como uma consciência de si que,
por ignorar-se a si mesma, isto é, não ser ainda para si, tenderia a
manifestar-se através de palavras e de ações alienadas ou como “falsa
consciência”. Assim sendo, parecerá necessário esperar que a desalienação ou a
consciência “verdadeira” lhe seja trazida de fora por aqueles que “sabem”. Há o
risco ideológico de diferenciar o aluno (e a classe social) do professor (e da
vanguarda) em termos de imaturidade/maturidade, ignorância/ saber,
alienação/verdade, em suma, diferenciar hierarquizando e fazendo com que um dos
polos seja uma espécie de receptáculo vazio e dócil no qual venha depositar-se
um conteúdo exterior trazido pelo outro polo. Com isso, sob o nome de
conscientização, reedita-se sob nova roupagem o conservadorismo e o
autoritarismo da educação que se pretendia combater.
h) O que seria o
professor?
Platão
diria: aquele capaz de fazer com que o outro se lembre da verdade,
reconhecendo-a. Rousseau diria: aquele capaz de fazer da cultura uma astúcia
que reproduza, por novos caminhos, a vida natural perdida. Kant diria: o que
traz as luzes, ensinando a pensar em lugar de fornecer pensamentos. O jesuíta
disse: aquele capaz de estabelecer uma distância absoluta entre o conhecimento
e o real, ensinando, por exemplo, a crianças que falam o português, o latim por
meio das regras da gramática latina. Hegel diria: aquele capaz de fazer lembrar
e de trazer as luzes, respeitando as etapas de desenvolvimento da consciência.
Victor Cousin disse: um funcionário posto pelo Estado a fim de transmitir moral
e civismo, formando espíritos aptos necessários ao próprio Estado. Um marxista
perguntaria: quem educa o educador? Paulo Freire disse: aquele capaz de
conscientizar, revelar a opressão e anular a colonização. Essa multiplicidade
de afirmações díspares (...) e abstratas, pois foram feitas sem qualquer
consideração do contexto histórico que as solicitava, tem apenas a finalidade
de um lembrete óbvio: quando propomos uma pedagogia, além de possuirmos
determinadas ideias acerca do conhecimento e de sua transmissão e uma ideia
acerca do aluno, qual o professor que pressupomos? (...). O trabalho
pedagógico, por ser um trabalho, não é transmissão de conhecimento (para isso
existem outros instrumentos), mas também não é um diálogo, uma comunicação intersubjetiva
entre o professor e seus alunos (...). A relação professor-aluno é assimétrica
e sem diálogo: este se torna possível quando o aluno desaparece e em seu lugar
existe o novo professor. O diálogo é ponto de chegada e não ponto de partida,
só se torna real quando o trabalho pedagógico termina e o professor encontra-se
com o não-aluno, o outro professor, seu igual. É preciso aceitar a assimetria
com rigor para não forjar a caricatura do diálogo e exercer disfarçadamente a
autoridade. Ausência de diálogo não significa presença da autoridade (...). Ao
professor não cabe dizer “faça como eu”, mas “faça comigo”. O professor de
natação não pode ensinar o aluno a nadar na areia fazendo-o imitar seus gestos,
mas leva-o a lançar-se n’água em sua companhia para que aprenda a nadar lutando
contra as ondas, fazendo seu corpo coexistir com o corpo ondulante que o acolhe
e repele, revelando que o diálogo do aluno não se trava com seu professor de
natação, mas com a água. O diálogo do aluno é com o pensamento, com a cultura
corporificada nas obras e nas práticas sociais e transmitidas pela linguagem e
pelos gestos do professor, simples mediador. Por que esse professor é utópico
ou possível? Por que ora aparece, ora desaparece? Porque sua posição é muito
arriscada: está sempre a um passo de tornar-se guru, de assenhorear-se do lugar
do mestre e manter os alunos, para sempre, na condição de discípulos. Uma pedagogia
crítica deveria interrogar esse risco cotidiano: de onde vem e por que vem a
sedução de tornar-se guru? De onde vem e por que vem em nós e nos alunos o
desejo de que haja um Mestre, o apelo à figura da autoridade? E por que,
divididos que somos, não cessamos de ter consciência desse risco e dessa
sedução sem cessarmos de agir para promovê-los? Que forma mais sutil poderia
haver para reconciliar nossa divisão do que fazer com que os alunos dialoguem
conosco e não com o pensamento e com o mundo que os rodeia, dissimulando nesse
diálogo imaginário o deslocamento operado para conduzir a assimetria real até
uma simetria ilusória? A ideologia não está fora de nós como um poder perverso
que falseia nossas boas intenções: ela está dentro de nós, talvez porque
tenhamos boas intenções.
6.
Johannes
Hessen. Teoria do conhecimento. Tradução
– João Vergílio Gallerani Cuter. Revisão Técnica – Sérgio Sérvulo da Cunha. Martins
Fontes. São Paulo, 2000.
[Livro]
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