quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes



Novos Tempos: Novas Leituras
A história do surgimento de um grupo “diferente”


Trabalho de conclusão da disciplina CCA0278 - Psicologia da Comunicação, ministrada pelo Prof. Dr. Ismar de Oliveira Soares, baseado no texto Fundamentos Teóricos, de David & Zimerman (in Como trabalhamos em grupos).




Jorge de Lima
São Paulo – 2006

Introdução

De maneira bastante sucinta, pretende-se, a partir da leitura do texto Fundamentos Teóricos, de David & Zimerman (in Como trabalhamos em grupos, Atimed, 1997) e das discussões havidas em aula, durante a disciplina CCA0278 - Psicologia da Comunicação, discorrer sobre o tema “grupos”, tendo como pano de fundo e exemplo a Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE).

Trata-se, esta comunidade, de uma igreja neopentecostal sediada na região central da cidade de São Paulo. Já de princípio, há que se concordar que o fato de ser uma igreja não justifica por si sua escolha como tema, haja vista a grande quantidade de igrejas que são criadas numa cidade do porte de São Paulo. Tampouco o fato de ser neopentecostal, uma vez que essa vertente do cristianismo protestante já deixou de ser fato novo há muito tempo. O que bem pode caracterizar essa comunidade, para que possa ser utilizada na compreensão das dinâmicas de grupo e na compreensão do papel revolucionário das “releituras” de textos e símbolos já consagrados pelos consciente e inconsciente coletivos, é o fato de ser uma comunidade cristã formada por homossexuais.

Como bem conceituou Zimerman & Osório:

O ser humano é gregário por natureza e somente existe, ou subsiste, em função de seus inter-relacionamentos grupais. Sempre, desde o nascimento, o indivíduo participa de diferentes grupos, numa constante dialética entre a busca de sua identidade individual e a necessidade de uma identidade grupal e social (ZIMERMAN & OSÓRIO, 1997).

Desta forma, também um segmento social do porte dos homossexuais apresenta condições demográficas para estabelecer entre si os laços típicos de agrupamento, de grupos, de redes e de comunidades. Com relação à situação sexual em si, para não se aprofundar muito na discussão, pode-se se apropriar brevemente das idéias expostas por Fry e MacRae, que pressupuseram “que não há nenhuma verdade absoluta sobre o que é a homossexualidade e que as idéias e práticas a ela associadas são produzidas historicamente no interior de sociedades concretas e que são intimamente relacionadas com o todo destas sociedades” (FRY & MACRAE, 1985).

Contextualização

Durante séculos, talvez mesmo desde sempre, a sociedade aprendeu a dividir-se em distintas partes, para atribuir-se valores e tarefas. E, muito comumente, essas divisões se atrelaram em perspectivas duais: ricos e pobres, dominantes e dominados, brancos e negros, mulheres e homens, opressores e oprimidos, com direitos e sem direitos – e assim por diante. E mesmo aquelas formas de divisão que pretenderam-se mais democráticas também, em algum grau, possibilitaram incompatibilidades ou insatisfações. Contudo, um traço característico da Modernidade (ou mesmo da Pós-Modernidade) é a ruptura com o canônico e a possibilidade infinita de tudo poder ser revisto, relido, reinterpretado e rediscutido. Vive-se a “Era do Revisionismo”.

Indiferentes aos conceitos, mas participantes desse clima social, pessoas no mundo inteiro estiveram, estão e estarão reescrevendo a História – às vezes em mínimos movimentos, muitas vezes de dentro para fora. Foi assim com a questão Racial, foi assim com a questão Feminina e tem sido assim com a questão da Diversidade Sexual.

Nesse sentido, os grupos segregados, cada um a seu modo e momento, buscam ocupar um lugar nos lugares que lhes são historicamente interditados dentro da Sociedade: social, político, religioso, econômico, cultural, entre outros.

Atualmente, a Diversidade Sexual, representada mais emblematicamente pelos gays, buscou e praticamente já garantiu, nas sociedades ocidentais, a sua participação no lugar social, no político e no econômico.

Com relação à sua participação cultural, representada pela atuação na mídia, esta sempre aconteceu. Mas ainda sofre interferências: os gays estão na mídia, mas em condições ainda não tão adequadas – a) situações restritas na televisão por assinatura, b) personagens altamente estereotipadas nos veículos de comunicação de massa ou c) publicação de produtos editoriais de circulação marcadamente segmentada. Porém, indiscutivelmente, também participam do momento cultural.

Assim, concretamente, a religião representa, ainda hoje, um lugar na sociedade onde a Diversidade Sexual ainda está invisível ou flagrantemente hostilizada. É, pois, uma fronteira real que vem sendo sistematicamente ocupada.

Acontece que a religião é, por tradição, estruturada em tabus e dogmas. E subsiste em função deles. Removam-se abruptamente esses elementos (tabus e dogmas) do conjunto religioso e se obterá algo completamente diferente na forma e no conteúdo. Logo, as releituras possíveis, e mesmo os revisionismos, têm um raio de ação menor para se desenvolver quando o assunto é crença religiosa, divindade, espiritualidade etc.

Mas Musskopf, em seu trabalho intitulado “Uma brecha no armário – propostas para uma Teologia Gay”, vai exatamente nesta direção: a de propor que certos tabus religiosos sejam revisitados e revistos. E cita, de passagem, o trabalho de outra colega, Anete Roese, também da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, intitulado “Deus escolheu as cousas loucas... para envergonhar as fortes”, que também fez o mesmo: tentou tratar do tema à luz de conceitos mais libertários, propondo que a homossexualidade seja um assunto que possa ser compreendido pela Teologia.

No caso de Musskopf, seu texto concatena o Movimento Gay com a Teologia da Libertação e com a Teologia Feminista da Libertação. Para concluir que, desde então, esses movimentos permitiram aberturas no tecido social que serviram para questionar as verdades cristalizadas da tradição que excluíam, e excluem, pessoas.

Musskopf acrescenta que:

Mesmo assim, o despontar deste novo sujeito teológico não teve reflexos dentro da igreja e da teologia da mesma forma como o tiveram a Teologia da Libertação, com sua opção preferencial pelos pobres, e a Teologia Feminista, com a valorização do potencial das mulheres. Especialmente porque a questão da homossexualidade esteve ligada a uma moral sexual rígida (encarada do ponto de vista sexual-genital) e à interpretação de determinados textos bíblicos, a-historicamente vinculados ao tema (MUSSKOPF, 2002).

Em seu trabalho, Musskopf debruça-se sobre a igreja católica romana, símbolo máximo da resistência político-religiosa ocidental ao tema. Lembrando que “ao invés de centrar o debate na existência de uma identidade gay e lésbica, no geral, a discussão tem se concentrado na tradição das igrejas e na utilização de ‘textos-prova’, deslocados de seu contexto histórico, político e cultural”.

O resultado disso, dessa “discussão” unilateral, não significou uma preocupação essencialmente teológica, com algumas exceções, mas sim maior afastamento das pessoas homossexuais do mundo da religião. Ou seja: o gay não deixou de ser “gay” em função das posturas religiosas. Ele deixou de ser “religioso”. O que empobreceu, ainda mais, a cultura religiosa que vem, já há algum tempo, sofrendo baixas entre seus seguidores, em direção, principalmente, a atitudes e discursos com apelos mais práticos e imediatos (auto-ajuda, espiritualidades de “resultado”, etc).

Ocorre que essa legião de afastados, aos poucos, pelas próprias dinâmicas sociais, foi se “encontrando”, foi estabelecendo vínculos e foi se dando conta de que não era constituída de pessoas “únicas”, mas sim de várias e várias pessoas que, uma vez vinculadas, poderiam formar um coletivo. Poderiam formar um grupo e, desta forma, mais do que resistir: poderiam se representar enquanto grupo social religioso.

Nas palavras de Musskopf, isso significaria dizer que:

Numa sociedade regida pelos parâmetros da heterossexualidade, a homossexualidade aparece como anormal, ameaçando a ordem estabelecida. No entanto, a contemporaneidade, suplantando a Modernidade, exacerba a experiência de desestabilização, modificando conceitos como “normal” e “anormal”, assumindo o caos como espaço possível para a criação, onde se delineiam novas subjetividades (MUSSKOPF, 2002).

Cabe observar que a quantidade de pessoas nas condições de excluídos das igrejas por conta da Diversidade Sexual é um número muito grande e constitui-se de um contingente disperso, principalmente numa cidade com mais de 10 milhões de habitantes. Assim, o simples fato dessas pessoas existirem e morarem numa mesma cidade não lhes garante automaticamente uma identidade de grupo.

Aliás, a própria definição do termo grupo, nas palavras de Zimerman & Osório, é muito vaga e imprecisa, já que pode “designar conceituações muito dispersas num amplo leque de acepções”. Por isso, parece apropriado exemplificar como essas pessoas puderam vencer os séculos de exclusão e formarem um grupo dentro de um segmento tão estático quanto o é o religioso.

A história de um grupo

Em São Paulo, um marco recente para o tema gay é o Festival Internacional Mix Brasil. Outro marco, este ainda mais visível, é a Parada do Orgulho GLBT. Duas atividades com forte apelo midiático. A primeira, o Mix Brasil, incorpora-se da estética cinematográfica para veicular a cultura gay para gays e para não-gays. E tem tido reiteradas edições e cristalizada aceitação dentro da sociedade paulistana – e também brasileira, uma vez que é apresentado em outros estados do país.

Já a Parada do Orgulho GLBT assumiu proporções tão monumentais que, de acontecimento “invisível” e não autorizado em 1997, tornou-se evento do calendário oficial da cidade e do estado, contando com forte cobertura por todos os veículos: rádios, televisões, jornais e revistas. E projetando-se além das fronteiras do município, do estado e do país.

Contudo, menos midiático, ainda que capaz de capturar as lentes dos jornais e telejornais pelo apelo do “inusitado”, um outro marco vem se constituindo, agora no campo religioso.

Primeiro surgiu um grupo um pouco disforme, um verdadeiro “ajuntamento”, denominado Grupo Gay Cristão, reunindo-se no centro da cidade de São Paulo. Em verdade, apesar do nome, não era um grupo, pois, pelo entendimento de Zimerman & Osório, “um grupo não é um mero somatório de indivíduos; pelo contrário, ele se constitui como nova entidade, com leis e mecanismos próprios e específicos”. Assim, apesar da menção “cristãos” no nome, ocorre que o mesmo era constituído por gays de diversas denominações cristãs e de diversas religiões e crenças não-cristãs, que permitia que todos tivessem o direito de acreditar em tudo e professar todas as formas de espiritualidade o tempo todo. O que certamente decretaria, como de fato decretou, sua dissolução.

Nova iniciativa veio à tona em 2002, quando seis rapazes, reunidos num restaurante na zona oeste da capital, começaram a fazer encontros religiosos. Aos poucos, novas pessoas foram se agregando e aquele encontro passou a crescer organicamente, desta vez em torno de princípios religiosos menos fluidos.

Tudo acontecia lentamente, até que dois episódios midiáticos contribuíram, de maneira diversa, mas decisiva, para que as muitas pessoas espalhadas pela cidade se conectassem a esse agrupamento inicial.

Primeiro, uma entrevista que seu líder concedeu à Revista Época (periódico semanal de abrangência nacional editado pelas Organizações Globo). Como desdobramento desta entrevista, aconteceu uma série de outras entrevistas em programas televisivos do tipo talk-show, mas de pequena audiência.

Depois, ocorreu que uma filmagem não-autorizada de uma das reuniões do grupo foi exibida no “Programa do Ratinho” – um programa vespertino de caráter popular e sensacionalista comandado pelo animador Carlos Massa e levado ao ar, diariamente, pela segunda mais importante cadeia de televisão aberta do país. Apesar do grande susto causado aos discretos freqüentadores, esse segundo evento “lançou” nacionalmente a igreja.

Essa primeira iniciativa chamou-se Igreja Cristã Acalanto. Desta, surgiram outras duas: a Comunidade Cristã Nova Esperança e a Igreja Evangelho Para Todos. A própria divisão da Acalanto em outras duas já representa, por si, um exemplo de como a dinâmica de grupos atua, pois, ainda que essas pessoas tivessem entre si mais vínculos que na experiência dos Gays Cristãos, ainda lhes faltava muitos dos pontos elencados por Zimerman & Osório como condições básicas mínimas que caracterizam os grupos.

A Comunidade Cristã Nova Esperança

Dissidência clara e assumida da Igreja Acalanto, a Comunidade Cristã Nova Esperança formou-se também de maneira orgânica, mas forjando para si, logo na sua gênese, um conjunto de valores que deveriam ser perseguidos por todos os membros, o tempo todo, e que criavam para a igreja, e seus adeptos, uma identidade própria. Chamou-os de Declaração de Princípios. Em verdade, trata-se de um decálogo no qual estão definidas as linhas de conduta da igreja e que são, em sua maioria, releituras de trechos da milenar Bíblia Sagrada – o mesmo livro de onde os críticos religiosos mais fervorosos tiram seus argumentos contrários à condição gay.

Dois anos após a sua fundação (agosto de 2004), a Nova Esperança já encontra eco em instituições similares no interior do Estado de São Paulo (Leme, Guarulhos e Osasco), no Brasil (Rio de Janeiro e Porto Alegre) e no Exterior (México, Guatemala e Estados Unidos), tornando-se uma intersecção entre grupos semelhantes estabelecidos nesses lugares. Nesse sentido, inclusive, é mesmo oportuno se falar na constituição de uma rede, pois os muitos grupos não estabeleceram uma hierarquia entre si, já que seu líder máximo (Deus, Jesus Cristo) ocupa um lugar intangível, com a intagibilidade que é característica do centro de uma rede (Deus para todos, mas não pertencente a ninguém).

Grupos dentro do grupo

Último tópico a ser tratado, a constituição interna desta comunidade, é também sui generis, pois reúne a diversidade da Diversidade Sexual e a diversidade das identidades religiosas.

Importa saber que afluem semanalmente para as suas várias reuniões, homens e mulheres de todas as idades, vindos de todas as partes da cidade, da Grande São Paulo e do Estado. A maneira exata de como se propaga a notícia de existência da igreja e também o que dela se fala que possa atrair uma miríade de pessoas tão diversas é ainda algo que os próprios coordenadores da comunidade desconhecem.

Sabe-se que muitos vão, mas não ficam, pois, de alguma maneira, não encontram exatamente o que procuram. Sabe-se que muitos vão por motivos religiosos e outros por motivos não religiosos.

Mas, ainda assim, ainda que se depurando os visitantes curiosos e ocasionais, o conjunto de freqüentadores permanentes é, também, um retrato das multiplicidades da metrópole (étnica, cultural, econômica, política, religiosa, etária).

Do ponto de vista prático, esse número já atingiu mais de mil pessoas há algum tempo. E os registros indicam que estas pessoas professam todas as religiões que se tem notícias, incluindo as muitas denominações cristãs e, é claro, um número considerável de pessoas que se declaram sem-religião, ateus, agnósticos etc. O que possibilita múltiplos recortes, relativos, por exemplo, à faixa etária, à postura sexual, ao poder econômico, à região onde mora, aos interesses culturais, etc.

Ou seja, grupos (ou subgrupos) dentro do grupo. Muitos dos quais, com dinâmicas próprias e valores bem demarcados, criando, inclusive, lideranças internas.

Como sintetizar um discurso, ainda que religioso, que mantenha essas pessoas e esse subgrupos vinculados e, desta forma, participantes de um só grupo, tem sido tarefa árdua, mas feliz, de seus coordenadores. E, à medida que são bem sucedidos, devolvem à sociedade pessoas que, outrora desvinculadas entre si, não participavam desta sociedade com a totalidade das suas aptidões – posto que se sentiam desconectadas socialmente, uma vez que estavam alijadas de um dos componentes sociais mais importantes da condição humana que é o exercício franco da sua religiosidade.

Nesse sentido, o termo comunidade utilizado pela denominação religiosa para se identificar vem ao encontro de uma tese defendida dentro do texto de Zimerman & Osório, para os quais “um conjunto de pessoas constitui um grupo, um conjunto de grupos constitui uma comunidade e um conjunto interativo das comunidades configura uma sociedade”.

Para o futuro, cabe acompanhar se, de alguma maneira, sua evolução no meio do tecido social da metrópole terá propiciado interações com os demais grupos que fazem parte desse rico encontro de pessoas que é a cidade de São Paulo. E verificar como a cidade reagiu ao surgimento de mais um grupo “diferente”.


Aluno: Jorge de Lima
Curso: Filosofia (FFLCH)
Data: 01/12/2006

Bibliografia


-Musskopf, André Sidnei. Uma brecha no armário: proposta para uma teologia gay. São Leopoldo: Sinodal, 2002.
-Fry, Peter; MacRae, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Abril Cultural, Brasiliense, 1985.
-Osório, Luiz Carlos; Zimerman, David E. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artimed
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Bibliografia de Apoio


-Cardoso, Fernando Luiz. O que é orientação sexual. São Paulo: Brasiliense, 1996.
-Sullivan, Andrew. Praticamente Normal - uma discussão sobre o homossexualismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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