quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Crônicas da vida crônica - replay


Que fria!

à Silvia Gomes Novo

A missão era a das mais complicadas, pois a cachorra, além de enorme e desconhecida, estava fraca e talvez ferida. Com a ajuda da prima, coloco-a no carro, com muito custo. De quebra, ainda recolheu uma pequena gata “sem raça definida”.
Hoje em dia se diz assim, bonitinho: sem raça definida. Mas antes, quando ela era criança, se falava “vira-lata”.
A cachorra, uma weimaraner, logo ganhou um nome meio “estrangeirado”, como diria sua tia-avó: Twiggy. A gata ainda trocou de nome umas duas vezes. Chegou mesmo a se chamar Sofia – nome de gente, não vai pegar bem. Depois trocaram. Mas que importa o nome? Gatos e gatas não vêm quando são chamados. Eles vêm e vão quando querem. São livres por natureza e arrogantes por definição.
A chegada das duas em casa foi uma convulsão. Por ser muito grande e ainda desconhecida, a cachorra demandava cuidados. Poderia avançar sobre a gata ou até mesmo sobre os outros gatos e os outros animais menores.
Assim, Silvia já saiu do carro gritando pela mãe, que estava lá dentro cortando milho. A tarefa era conduzir a cachorra pela cozinha até a área de serviço, enfurná-la lá e, para conter seus ímpetos, colocar de atravessado uma velha porta. As mulheres precisariam agir todas em conjunto Por isso, a mãe largou a grande faca sobre a mesa, abriu a geladeira e guardou lá o resto do milho que ainda iria ser cortado. Também guardou a parte do milho que já estava cortadinha, pronta para virar refogado.
O que se seguiu foi uma luta. Por sorte, a cachorra era mansa. O que atrapalhava era o seu tamanho e todo o cuidado que tinha que ser tomado pois a pobrezinha mal conseguia parar em pé: estava mesmo muito fraca.
Depois de colocada a porta de atravessado, foi providenciada uma cuia com água e também um pouco de ração. A bichinha comeu e bebeu como uma flagelada. Depois, como não soubesse sorrir, abriu a boca, satisfeita, deitou-se e dormiu.
E a gata?
Sim, porque com a correria em torno da cachorra todas se esqueceram da gata que já se chamara Sofia.
Procuraram-na por toda parte. Inclusive nos outros cômodos da casa e no quintal. Chegaram mesmo a duvidar se ela havia escapado antes de entrarem todos na cozinha. Ela também estava tão fraquinha, lembrou-se a mãe. Será que haviam se descuidado e a cachorra, sem que vissem, dera fim na gata? Não pode ser, não havia sangue nem vestígios. Fugir, também não fugiria: era dócil e estava mesmo muito debilitada.
Como toda a casa já havia sido revirada e todos os móveis já havia sido afastados e vasculhados umas mil vezes, mãe e prima deram a missão por encerrada. Ou a gata morrera ou sumira. Lá não estava.
Silvia, inconformada, fez de tudo, até promessa para São Longuinho: haveria de achar a gata. E viva.
Num lampejo, abriu a geladeira.
E não é que a felina estava lá dentro, já cinza de frio, com os pêlos todos gelados, encolhida na porta da velha geladeira ao lado da jarra com leite!
Imediatamente, foi envolvida nos braços de Silva e aquecida com seu calor e amor. Tiritava de frio. Mas sobreviveu e talvez até tenha tido uma existência feliz.
Todos aprendemos lições com a vida. Até mesmo os gatos. Sofia, daquele dia em diante, mesmo trocando de nome, nunca mais passou perto daquele inferno gelado chamado geladeira.

São Paulo, 21 de agosto de 2007.
Jorge de Lima


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