sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O caso da bibliotecária


Nesta semana encontrei-me com um brother que me deixou perplexo. Acontece que o amigo, às portas dos 50 anos, após 25 anos de relacionamento estável com terceiros (dois), ainda espera encontrar uma pílula que o livre de ser o que ele é. Fazer o quê? Neste ano, decidi não comemorar o meu aniversário (20 de janeiro). Estou muito barrigudo para entrar nas minhas roupas velhas e muito pão-duro para comprar novas. Vou caminhar mais e comer menos, assim volto para o antigo corpo e para as antigas calças. Aniversários engordam a gente. Ontem postei uma e hoje posto outra: crônicas apresentadas aqui na semana de artes do meu empregador. Todas inspiradas nas histórias da grande Silvia Gomes Novo, a defensora dos bichos, dos frascos e comprimidos:





Ravínia

à Silvia Gomes Novo

A pequena biblioteca do Departamento de Física Quântica já havia incorporado todos os recursos modernos disponíveis para as grandes bibliotecas. Era um espaço de vanguarda no assunto tecnologia. Por isso, o trabalho da senhorita Ravínia resumia-se a manter tudo em ordem. Contudo, para a senhoria Ravínia, bibliotecária das mais polidas, essa tarefa não era simples. Para ela, os jovens alunos usuários – e até mesmo os já experientes professores e pesquisadores – precisavam compreender que uma biblioteca era uma biblioteca. E isso significava, no seu entender, ordem e disciplina. Além de reverente silêncio e comedimento.
Talvez por seu excesso de zêlo transmitir uma certa imagem de eficiência e de carinho ímpar pela biblioteca, todos acabavam cedendo aos exageros de Ravínia. Assim, os “meninos” nunca entravam com lanches ou revistas ou livros na biblioteca. As “meninas” reservavam ao dia das consultas aos livros suas roupas mais “comportadas”. E mesmo os professores se abstinham de exercer sobre a biblioteca os mesmos controles dos demais setores do departamento.
Aos olhos de Ravínia a paz reinava no ambiente por conta da sua diligente vigilância.
Pontualmente, às 8 horas da manhã, a porta de vidro era aberta. Ela já estava lá dentro uns 10 minutos antes verificando se o pessoal da noite havia posto tudo rigorosamente no lugar. Sempre havia, claro, por mais cuidadosos que fossem, algo que Ravínia consideraria um insulto à sua inteligência e que seria anotado para a terrível reunião semanal.
Vestia-se, ordinário, discretamente. Blusas com golas e punhos fechados. Ou brancas, ou pretas, com um camafeuzinho no pescoço, ou amarelinhas, nos dias mais claros. O amarelinho lhe caia bem, no seu próprio julgamento. E sinalizava um dia com um pouco mais de paz no ambiente. O lugar ficava mais leve quando Ravínia estava de amarelinho. No geral, contudo, vestia-se como se estivesse no século anterior. As pessoas, invariavelmente, não reparavam nela. Não porque fosse desprovida de interesse. Mas porque se temia por seus comentários.
Ravínia não era mal-educada ou grosseira. Pelo contrário, era polida, falava idiomas. Era culta. Mas amava o silêncio que emanava das estantes. E, em seu respeito, era racionalmente dura. E sempre direta: aquilo não era uma biblioteca de física quântica? Então, não era espaço para “poesias”.
Aconteceu que uma daquelas menininhas descuidadas esquecera um livro sobre uma das mesas de leitura. O volume, como de praxe, foi posto em sua escrivaninha para que, identificado o proprietário, o mesmo fosse advertido de que não se deveria entrar na biblioteca com livros alheios a ela. Onde já se viu!
“O amante”, de Marguerite Duras. Claro que Ravínia sabia algo sobre essa autora francesa, que vivera boa parte da sua vida na então Indochina. E não era coisa boa não! Onde já se viu uma mulher escrever as coisas que ela escrevia. Se ainda fosse um homem! Francamente.
Abriu o livro para ver se encontrava vestígios de seu proprietário. Que era uma menina avoada, não tinha dúvidas. Só as meninas ingênuas acreditam nesses romances. Não encontrou.
Um dia, eu já tinha uma certa idade, no hall de um prédio público, um homem veio até mim. Ele se apresentou e me disse: "Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que a senhora era bonita quando jovem. Eu vim lhe dizer que, para mim, a senhora é mais bonita agora do que quando era jovem. Gosto menos de seu rosto de moça do que o de agora, devastada".
Mas que impertinência! Isso é coisa que se diga a uma mulher! E continuou lendo, meio sem querer, para saber quantos outros absurdos poderia haver naquela história verdadeiramente sórdida.
As páginas seguintes voaram sob seus olhos hábeis e atentos. E o expediente da biblioteca, naquele dia, correu sem que Ravínia fizesse as suas famosas e temidas rondas.
Terminou o dia antes de terminada a leitura. Discretamente, acompanhada do livro, ela foi-se para casa, onde finalmente encontrou-se com o ponto final da história.
Morava sozinha, e com simplicidade. Poderia viver melhor, mas não tinha motivos para exageros.
Dormiu e sonhou. E pela manhã, não quis mais saber da companhia dos livros de física quântica.


São Paulo, 21 de agosto de 2007.


Jorge de Lima.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostaria de saber mais sobre Silvia Gmes Novo. angelanovo@ig.com.br