UNIVESP
– Curso de Pedagogia
Disciplina: Sociologia da Educação
Semana
4 - As relações entre desigualdades sociais e desigualdades escolares
joralimaTEXTO
Os
objetivos dessa semana são:
1. Entender a relação que ocorre
entre as desigualdades sociais e as desigualdades escolares;
2. Compreender que políticas
educacionais igualitárias podem apresentar resultados desiguais;
3. Refletir sobre a relação
contraditória entre escola pública e exclusão social;
4. Compartilhar com seus colegas
não só as dúvidas, mas também a reflexão e as inquietudes que ela traz na
aprendizagem desses conteúdos.
Videoaula
- 1
A função social da escola | UNIVESP
Profa.
Ana Maria Klein
A
extensão da escola na vida das novas gerações. A escola é essencial à formação
dos novos cidadãos, por ser a portadora dos saberes selecionados pela sociedade
e dos seus valores. As crianças passam boa parte da sua vida dentro da escola
(4 horas por dia, 5 dias por semana, 9 meses do ano, por 12 anos seguidos, no
mínimo). Todos os jovens devem (ou deveriam) passar pela escola. O tempo fora
da escola ainda reflete a importância da instituição: lição de casa, outras
tarefas, os colegas, os trabalhos em grupo. Os adultos, quando conversam com
crianças, geralmente se pautam pela vida escolar. A função da escola ao longo
do tempo. Segundo Julio Vera Vila (2007, p.12), destacando o trabalho de Mariano
Fernandez Enguita (A face oculta da
escola), há três momentos de mudanças nas relações entre escola e
sociedade, os quais foram denominados de: 1. suprageracional, 2. intergeracional
e 3. intrageracional. Suprageracional.
Antiguidade. Grupos reduzidos (escribas e sacerdotes) tinham uma educação
institucionalizada. Era a elite da sociedade. Aos demais, bastava a educação
familiar ou da comunidade, porque o saber necessário para a vida era aprendido
durante a vida cotidiana. A escola tem um alcance social muito pequeno. Intergeracional. Revolução industrial e
transformações sociais. Surgimento do Estado moderno. A família já não é capaz
de ensinar ao jovem tudo o que ele precisa saber para participar na sociedade. Parte
da educação dos jovens é delegada à escola, pois a urbanização e a ciência
produzem novos conhecimentos. A escola segue sendo elitista, pois apenas o
básico da educação é aberto a muitos; a progressão acadêmica seguiu sendo
possível apenas aos privilegiados socialmente. Intrageracional. É o hoje. Transformações aceleradas afetam a vida
das pessoas. Informação e conhecimento assumem um papel cada vez mais decisivo
em todos os aspectos da vida. Assim, apenas a formação inicial e centrada na
transmissão de conteúdos não é mais capaz de suprir as necessidades
educacionais dos indivíduos, faz-se necessária a formação ampla e continuada. Não
há certezas educacionais (garantia de emprego com o término da escolarização). Escola
e complexidade social. Os diferentes papéis da escola acompanham a complexidade
da própria sociedade. Escola e sociedades estáveis. Em sociedades estáveis, a
escola tem um papel restrito, resumindo-se, praticamente, à leitura e à
escrita, pois os conhecimentos necessários à vida social mantêm-se durante
várias gerações. Daí o conhecimento ser suprageracional. Escola e sociedades
que mudam entre as gerações (de uma para outra). A escola transmite saberes
como leitura e cálculo que a família já não dá conta de ensinar. Escola e
sociedades em constante mudança. As mudanças são rápidas, grandes e constantes,
dentro de uma mesma geração. Papel da escola torna-se imprescindível, para
preparar os indivíduos para a vida social. Lança desafios para a escola se
enquadrar nessa nova dinâmica, tornando-se mais aberta e mais flexível.
Videoaula
- 2
Igualdade,
desigualdade e escola
Profa.
Ana Maria Klein
Desigualdade
dentro da escola. Como se manifesta? Para a pesquisadora Vanda Mendes Ribeiro, o
desafio é fazer com que todas as crianças aprendam. A escola mais justa é
aquela que consiga fazer com que mais crianças, mesmo com suas desigualdades,
aprendam o que precisa ser aprendido. O vídeo apresenta dados de um estudo da
UNICEF sobre as desigualdades sociais e a educação. Por exemplo: crianças
negras e as de áreas rurais têm quase 70% mais de chance de viver na pobreza,
se compradas às brancas e urbanas (Fonte: Unicef – Todas as crianças na escola
em 2015). Exibe o mapa do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, que
mostra a distribuição de crianças alfabetizadas até os 8 anos (fonte: PNAIC), o
que demonstra a desigualdade regional, já que o Norte e Nordeste exibem os
números mais negativos. Escola reprodutora ou transformadora das desigualdades
sociais? Conclui que a escola reproduz a desigualdade social, tornando-a uma
desigualdade escolar. Papel da escola na reprodução das desigualdades sociais.
Questiona-se se esse papel reprodutor da escola é universal. Cita estuda
conduzido por Francois Dubet na Europa, envolvendo pesquisadores de vários
países europeus. O que acontece depois da escola, como as sociedades utilizam e
valorizam os títulos escolares? Para Dubet, ao se perceber o valor que a
sociedade dá para os títulos escolares, se consegue compreender o papel da
escola como reprodutora ou não das desigualdades sociais. A influência do
diploma é mais elevada quando o emprego é relativamente raro e as desigualdades
escolares são grandes. Posição social e o diploma. Quando a influência da
escola é grande, não apenas as desigualdades de carreiras escolares são
importantes, mas também a reprodução é maior. Tratam-se de sociedades rígidas,
nas quais a atribuição das posições é decidida por diplomas, eles próprios
decididos pela origem social. O peso da renda dos pais explica a elevada renda
dos filhos no futuro. Dubet verificou que existem sistemas igualitários, que
individualizam as pedagogias, de modo que a homogeneidade da formação não seja
uma maneira de marginalizar aqueles que não estão dentro da maioria. Redes
igualitárias. Escolas que selecionam mais tarde (passam um grande tempo com um
currículo comum, não separando os alunos pelo nível de rendimento logo cedo,
buscando atender essas diferenças dentro da sala de aula, respeitando,
portanto, a heterogeneidade), que mantêm todos os alunos juntos e que
individualizam as pedagogias. São, portanto, menos reprodutivas e mais
igualitárias.
Vídeo de Apoio
Excelência com
equidade: as lições das escolas brasileiras | Fundação Lemann
Ernesto
Faria. Coordenador do estudo de Excelência com Equidade. Coordenador da
Fundação Lemann. É possível garantir o aprendizado de todos os alunos. A
pesquisa, contudo, não inclui todos, pois busca ver como algumas escolas
conseguem assegurar o aprendizado em meio a condições adversas, justamente para
se tentar aprender com essas escolas para depois melhorar a educação de todas
as crianças brasileiras.
Vídeo de Apoio
Jogo do privilégio
branco | ID_BR
Depoimentos
sobre raça, cor, privilégios. Treze pessoas responderam 50 perguntas sobre
privilégio racial. As respostas definem passos à frente ou atrás em um piso
demarcado por listas amarelas e simétricas, onde as treze pessoas estão
perfiladas. No final, o jogo se apresenta como uma campanha.
Fichamento
dos textos
1.
François
Dubet. A escola e a exclusão.
Tradução: Neide Luzia de Rezende. Cadernos de Pesquisa, n. 119, p. 29-45,
julho/ 2003.
[O
texto aborda basicamente a realidade da França, sendo que alguns pontos parecem
extrapolar a educação francesa]. O tema da escola e da exclusão remete a toda
uma série de problemas que é importante distinguir se quisermos ver a questão
de um modo um pouco mais claro (...). Vários problemas serão aqui abordados. O
primeiro deles é o lugar da escola numa estrutura social perpassada pelos mecanismos
de exclusão (...). O segundo tipo de problemas concerne à análise dos
mecanismos propriamente escolares que engendram uma segmentação escolar,
determinante na formação dos percursos de exclusão. Por fim, evoca as consequências
dessa mutação estrutural sobre a natureza das próprias experiências escolares,
a dos professores e a dos alunos (p.30).
Da exclusão social à exclusão escolar: um
processo duplo
Para
uns, o desemprego e a precariedade dos jovens advêm da falta de adequação entre
formação e emprego (...). [Essa argumentação repousa] sobre um estranho
silogismo que “demonstra”: já que todos os jovens egressos das [escolas de
ponta] ou dos cursos superiores têm um emprego, bastaria que todos os jovens
atingissem esse nível de qualificação para que tivessem um emprego (p.30-31). Para
dizer de modo analítico, a exclusão social dos jovens não advém só das relações
de reprodução. Para outros, os “defensores” da escola, o sistema educacional é
totalmente “inocente” em face da exclusão. Não somente o desemprego dos jovens
é independente do sistema de formação, mas todas as dificuldades da escola, a
“violência”, a débil motivação dos jovens, vêm de fora, do capitalismo e do
mercado (...). Essa dupla retórica que acusa ora o serviço público, ora o
mercado é também uma maneira de não tocar num problema relativamente complexo e
“clássico” (...). As relações entre esses dois conjuntos foram profundamente
transformadas ao longo do século, vinculando estreitamente a escola aos
mecanismos de exclusão, sem fazer dela, entretanto, a “culpada” como alguns
pretendem (p.31).
A escola preservada da exclusão
É
preciso lembrar a relação muito particular da escola e da sociedade, estabelecida
pela escola republicana do final do século XIX: relação caracterizada, de um
lado, por uma grande distância entre a escola e a produção, de outro, por uma
forte adequação da oferta escolar ao sistema das classes sociais (p.31). Mas a
marca essencial desse sistema [na França] era o dualismo escolar e o tipo de recrutamento
das diversas clientelas. A escola primária acolhia as crianças do povo, o
liceu, aquelas da burguesia, e o ginásio funcionava ao mesmo tempo como uma triagem
e como a escola das crianças das camadas médias. Esse modo de recrutamento, dominante
até o início dos anos 1960, é caracterizado por uma seleção que ultrapassa a
escola. Não é diretamente a escola que realiza as grandes operações de
distribuição dos alunos, são as desigualdades sociais que comandam diretamente o
acesso às diversas formas de ensino. Uma das consequências desse sistema é que
a escola aparece justa e “neutra” no seu funcionamento, enquanto as injustiças e
as desigualdades sociais é que são diretamente a causa das desigualdades
escolares. Num tal sistema, a escola intervém relativamente pouco sobre o
destino dos indivíduos, que é, antes de mais nada, um destino social (...). É
importante lembrar que, até o início da década de 1970, os diplomas eram
produzidos em quantidade menor ou igual à dos empregos qualificados a que
correspondiam. Nos anos 1930, a metade dos franceses não tinha o certificado de
estudos, os bacharéis e os estudantes eram raros e o valor social dos diplomas
era garantido pela sua escassez. O ensino profissionalizante oferecido pelos
centros de aprendizagem e pelas escolas profissionais de nível médio também
controlava o recrutamento, a fim de assegurar a absorção de seus egressos (p.32-33).
A escola estava como que protegida da exclusão social. Estava tão mais
protegida que os alunos, os quais hoje [seriam] qualificados como “excluídos”, saíam
da escola assim ao concluir a escolaridade obrigatória e não “incomodavam” a vida
dos ginásios nem a dos cursos colegiais e muito menos a da universidade. Esse
sistema foi profundamente abalado e novas relações estabeleceram-se entre a
escola e a sociedade, fazendo surgir os problemas da exclusão no coração da
vida escolar (p.33).
Produção e reprodução
A
escola não é mais “inocente”, nem é mais “neutra”; está na sua “natureza”
reproduzir as desigualdades sociais produzindo as desigualdades escolares
(p.34). A seletividade escolar encaminha os alunos mais fracos para as
trajetórias menos qualificadas, o que, por sua vez, aumenta suas “chances” de
desemprego e de precariedade. No outro extremo, os diplomas nos níveis mais
elevados oferecem uma proteção relativa diante do desemprego. Na medida em que
a reprodução não é uma fotocópia exata das desigualdades sociais, é possível
ver bem como a escola desempenha um papel autônomo na formação dos mecanismos
de exclusão, uma vez que o aluno do meio favorecido que fracassa na escola é
ameaçado de exclusão, enquanto o bom aluno do meio desfavorecido vê aumentar
suas chances de inserção profissional. Como um e outro desses percursos não são
estatisticamente raros numa escola de massas, é importante que se interrogue
sobre o próprio papel da escola (p.35).
Os mecanismos da exclusão escolar
A
análise do papel da escola nos mecanismos da exclusão escolar implica isolar,
evidentemente de maneira teórica e abstrata, os mecanismos e os fatores pelos
quais a escola “acrescenta”, alia fatores de desigualdade e de exclusão que ultrapassam
a simples reprodução das desigualdades sociais. Trata-se dos diversos “efeitos”
escolares que remetem à própria ação da escola. Pode-se sensatamente pensar
que, se a soma desses “efeitos” não constitui nem a única nem a principal causa
da desigualdade e da exclusão, representa, entretanto, um papel que não pode ser
negligenciado (p.35).
Os processos escolares
Entre
as consequências diretas da massificação escolar, é preciso considerar o
conjunto dos mecanismos de diferenciação interna que estrutura o sistema. A oferta
escolar não é homogênea e nem produz sempre o mesmo desempenho; não tem sempre
a mesma eficácia (p.35). Observa-se que os alunos com dificuldades são
orientados para trajetórias escolares mais ou menos desvalorizadas no interior
de uma hierarquia extremamente rígida, que impede, quase por completo, o
retorno para as carreiras honrosas ou prestigiadas (...). Pensemos nas consequências
das escolhas das escolas, que reforçam a concentração dos alunos menos
favorecidos e com desempenho pior em certos estabelecimentos e, no interior
destes, em certas turmas (...). O mesmo se passa com a escolha para a formação
das classes homogêneas. Estas (Duru-Bellat, Mingat, 1997) não aumentam muito o
desempenho dos melhores alunos, mas enfraquecem nitidamente aquele dos alunos
mais fracos. Pode-se assim evocar os mecanismos, mais sutis ainda, relativos às
decisões que beneficiam sempre os alunos mais favorecidos, cujo desempenho é
por antecipação considerado melhor já que eles se beneficiariam de um suporte
familiar mais eficaz (Duru-Bellat, Mingat, 1985). No final das contas, os
alunos mais favorecidos socialmente, que dispõem de maiores recursos para o
sucesso, são também privilegiados por um conjunto de mecanismos sutis, próprio
do funcionamento da escola, que beneficia os mais beneficiados. Essas
estratégias escolares aprofundam as desigualdades e acentuam a exclusão escolar
na medida em que mobilizam, junto aos pais, algo que não é só o capital
cultural, este entendido como um conjunto de disposições e de capacidades, especialmente
linguísticas. Apela a competências muito particulares referentes aos conhecimentos
das regras ocultas do sistema. A escola espera que os pais sejam pessoas
informadas, capazes de orientar judiciosamente seus filhos e ajudá-los com eficácia
nas suas tarefas. Ao mesmo tempo, fica claro que essa expectativa é cada vez
maior e situa-se cada vez mais cedo. Quanto mais os métodos pedagógicos são “ativos”,
mais eles mobilizam os pais, seus recursos culturais e suas competências educativas
(p.36).
O deslocamento das pesquisas
Imperceptivelmente,
a sociologia da reprodução foi substituída pelo estudo dos problemas sociais na
escola e pela análise dos mecanismos internos à escola (...). A geografia
social da escola pouco a pouco se transformou, com a concentração dos problemas
sociais nos bairros “difíceis”. Para que nos convençamos disso, basta observar
rapidamente as transformações do vocabulário dos atores e da instituição. O
problema das escolas e dos alunos “difíceis” se impôs, em poucos anos, como o ponto
no qual se focaliza o conjunto dos problemas sociais: periferias, desemprego, imigração,
delinquência, violência, abandono escolar. No vocabulário dos atores, o aluno
proveniente da classe operária foi substituído pelo aluno difícil e com
dificuldade, que é definido menos por sua situação de dominação do que por sua
exclusão. Os professores mudaram o vocabulário: as crianças do povo para as
quais a escola deveria assegurar a igualdade de oportunidades são substituídas
pelos alunos das regiões “sensíveis”, que é importante integrar à sociedade. Lá
onde se via um filho de operário, se vê um “caso social” (p.37). Confrontada
com a exclusão social, a escola é levada a se interrogar a respeito de uma de
suas “funções” fundamentais: sua capacidade de integrar os indivíduos num
quadro institucional e cultural (...). O encontro da exclusão social e da
escola renovou profundamente a Sociologia da Educação (p.37).
A escola questionada
O
acordo latente que ligava a escola à sociedade se desestabilizou muito. As
expectativas implícitas das famílias não são mais congruentes com os projetos
da escola, provocando assim o sentimento de uma crise de legitimidade da
escola. Essa crise está relacionada ao peso do fracasso escolar na experiência
dos pais, às suas expectativas desmesuradas, mas, sobretudo, à percepção de um
declínio da utilidade social dos diplomas (p.39).
A experiência da exclusão. O sujeito
ameaçado
O
problema da exclusão não é apenas saber, de maneira mais ou menos incisiva,
quem é excluído, mas de conhecer também os processos e os efeitos dessa
exclusão sobre os atores (...). A escola afirma a igualdade de todos. Ela não
afirma apenas a igualdade de oportunidades, mas a igualdade de talentos e
potencialidades. A ideologia do dom recuou sensivelmente e todas as crianças
têm, a priori, o mesmo valor, mesmo admitindo
que as condições sociais podem afetar o reconhecimento de suas qualidades e o
seu desenvolvimento. A massificação reforçou essa crença, que é sobretudo um
postulado étnico, cada um tendo o direito, “em princípio”, de aspirar a todas
as ambições escolares. Esse princípio de igual valor e de igual dignidade dos indivíduos,
de igual respeito que lhes é devido, está no centro de uma ética democrática reforçada
pelas mutações de representações da criança, que fazem dela um indivíduo, um
sujeito, e não apenas um aluno ou ser ainda incompleto. É importante ressaltar
que essa representação do sujeito tem algo de “heroico”, de difícil e de exigente,
pois ela supõe que cada um seja “soberano”, dono de si mesmo, responsável por
uma vida que não pode mais ser totalmente reduzida a um destino. O sujeito da
modernidade é o autor de si mesmo, tanto de suas virtudes como de seus vícios. Por
outro lado, não poderia ser diferente, a escola é meritocrática. Ela ordena, hierarquiza,
classifica os indivíduos em função de seus méritos, postulando em revanche que
esses indivíduos são iguais (p.40). Os alunos excluídos estão ameaçados de se sentir
destruídos por sua exclusão, que seria o signo de sua própria “nulidade”. Em face
desse desafio, muitas estratégias podem ser acionadas (p.41).
Retraimento
A
mais antiga e a mais silenciosa é a do retraimento. Os alunos malsucedidos descobrem
pouco a pouco que seu trabalho “não se paga”, que eles não conseguem obter
resultados honrosos apesar de seus esforços. Descobrem que as exigências dos professores
quanto ao “trabalho insuficiente” são apenas um modo de proteger a dignidade
deles. Descobrem assim que os esforços para remediar não são eficazes. Então os
alunos decidem não mais fazer o jogo, não mais participar de uma competição na
qual eles não têm nenhuma chance de ganhar. Eles se abandonam ao ritualismo
escolar, ao respeito exterior das regras escolares ao mesmo tempo em que se
liberam subjetivamente de qualquer envolvimento escolar (Barrère, 1997). Essa estratégia
não é isenta de racionalidade se se admite que ela permite aos alunos preservar
sua dignidade, sua autoestima, já que eles próprios contribuem para sua exclusão.
No fundo, trata-se de uma autoexclusão amena graças à qual os alunos salvam uma
parte de sua autoestima tendo em vista que eles nada fazem para obter êxito.
Eles perderam a partida, mas a honra está salva, uma vez que eles nada fizeram
para ganhar, instruídos por uma longa história de fracassos. Por parte dos
professores, essa estratégia de autoexclusão é percebida como uma crise de
motivação, como uma maneira de se proteger dos desafios escolares e escapar às
críticas (p.41-42).
O conflito
A
estratégia do conflito é uma outra maneira de responder às tensões estruturais do
sistema. Dentre as violências escolares que são hoje percebidas como o sintoma
mais manifesto da exclusão na escola, é importante distinguir várias lógicas e
várias significações. Uma delas é sem dúvida a entrada na escola das
violências, das desordens e das crises sociais: gangues, roubos, insultos...
Nesse sentido, a escola é sem dúvida ameaçada pela exclusão social. Mas existem
também violências escolares apresentando-se como reações à violência da escola:
agressões contra os professores, roubo de materiais... A explicação para esse
tipo de violência não se encontra numa permissividade excessiva nem no uso de
rédeas curtas. Inúmeros alunos sentem seus fracassos como atentados a sua
dignidade, a sua honra, a sua “cara”. Como não podem explicar esse fracasso por
meio de causas sociais, são levados a sentir-se como os responsáveis e os
culpados; [assim] escolhem atribuir essa exclusão escolar, sancionada nas salas
de aula e nos estabelecimentos menos categorizados, aos próprios professores. A
violência contra a escola e os professores é ao mesmo tempo um protesto não
declarado e uma maneira de construir sua honra e sua dignidade contra a escola
(p.42). Neste caso, também se pode dizer que as violências dos excluídos
antecipam sua exclusão, mas ocorre que essas condutas advêm das situações e das
próprias tensões escolares (...). Tendemos a conceber a exclusão escolar como
problemas circunscritos a um conjunto de bairros, estabelecimentos e clientelas
“difíceis”. Evidentemente, essa percepção não é falsa e muito se aprendeu sobre
esses casos na medida em que a demanda de conhecimentos e de estudos se
acentuou. Entretanto, a exclusão é o indicador de uma transformação da escola
que ultrapassa amplamente os casos agudos de exclusão. O problema da exclusão
nos ensina que as relações da escola e da sociedade se transformaram e que a
escola perdeu sua “inocência”. Ela própria é o agente de uma exclusão
específica que transforma a experiência dos alunos e abre uma crise de sentido
nos estudos, às vezes até da legitimidade da instituição escolar (p.43). A
escola integra mais e exclui mais que antes, apesar de seus princípios e de
suas ideologias, e funciona cada vez mais como o mercado, que é, em sua própria
lógica, o princípio básico da integração e da exclusão (p.44).
2.
Maria
Teresa Esteban. Educação popular: desafio
à democratização da escola pública. Cad. Cedes, Campinas, vol. 27, n. 71,
p. 9-17, jan./abr. 2007.
As
reflexões sobre a escola pública no Brasil passam necessariamente por suas
articulações com as classes populares e com a dinâmica de produção do fracasso
escolar. No Brasil, falar de fracasso e exclusão escolar obriga a referência às
classes populares (...). Os processos instituídos com o sentido de ampliar o
acesso à escola e de nela garantir a permanência dos alunos não expressam
claramente o compromisso com a educação popular (...). Não se considera que um número
expressivo de professoras e professores é das classes populares, tampouco que o
trabalho será realizado com alunos e alunas oriundos desse segmento social e
que seu desenvolvimento terá como parceiros familiares das classes populares
(...). [Assim,] a análise do cotidiano escolar evidencia que a atuação na
escola pública, hoje, não pode desconsiderar as classes populares que a
constituem (p.10). Um dos desafios centrais [é] a promoção de ações capazes de
fazer da escola pública uma escola de educação popular e não meramente uma
escola para as classes populares. Nesse percurso, é relevante interrogar as
relações entre esta mudança de perspectiva e a produção das práticas que
orientam a dinâmica pedagógica (p.11).
Homogeneidade e
desigualdade no cotidiano escolar
Ainda
que a incorporação à escola de amplos setores sociais até então dela excluídos
se apresente como consensual, análises sobre a função social da escola exprimem
tanto suas relações com a democratização do conhecimento, como apontam sua
participação nos processos de seleção e exclusão social. A escola apresenta-se
com sua ambivalência, posto que, mesmo quando oferece as mesmas oportunidades a
todos, exclui (p.11). No entanto, as buscas cotidianas pela igualdade de
oportunidades também produzem inclusão. A visibilidade crescente da diferença
como um de seus elementos constitutivos vem favorecendo, em muitos casos, a
configuração de práticas mais favoráveis àqueles nomeados como “diferentes” e a
instauração do debate sobre a relação entre diferença e desigualdade (p.11-12).
Evidencia-se a lógica perversa que também constitui a dinâmica escolar: mais do
que ser igual, é preciso parecer igual. Mantém-se na escola a lógica colonial,
traduzida por Bhabha (1998) na expressão “quase o mesmo, mas não exatamente”,
que evoca, na perspectiva do colonizador, a diferença como falta, como
deficiência, que justifica a subordinação (p.13). Mantida a lógica da
subalternidade, não expressar os conhecimentos valorizados na escola faz com
que as crianças passem a constituir uma categoria – as que fracassam na escola
– desqualificada no cotidiano escolar. A diferença, quando encontrada, não
produz uma diferença no olhar, que continua buscando o mesmo e continua
encontrando o mesmo, mantendo a coerência e a previsibilidade dos resultados
escolares. É importante ressaltar que os estudantes, mesmo não correspondendo
ao padrão, são cada vez menos excluídos da escola. Verifica-se a produção de
lugares desqualificados – quase os mesmos –, nos quais são confinados, mesmo
que simbolicamente, os que não aprendem. A exclusão da escola dá lugar à exclusão na
escola, que ressalta a manutenção do conflito presente na dinâmica inclusão/exclusão
(p.14).
Possibilidades
emancipatórias e contextos de exclusão
O
reconhecimento da heterogeneidade, que caracteriza o cotidiano escolar como
aspecto produtivo, evidencia a necessidade de se aprender a conviver
democrática e solidariamente com as diferenças, tomando-as como aspectos
indispensáveis ao permanente processo individual e coletivo de produção de
conhecimentos. Parte desse movimento vincula-se à redefinição das práticas
pedagógicas, predominantemente configuradas pela ideia de homogeneidade (p.14).
A escola pública é um espaço importante na disputa dos projetos de sociedade.
Assumi-la como lugar de educação popular é parte desta disputa (...). O
cotidiano escolar deixa evidente que a diferença não é a exceção, é a norma.
Portanto, as práticas pedagógicas se democratizam e se vinculam aos processos de
emancipação social, quando são realizadas com as diferenças e não contra as
diferenças. A qualidade excludente e redutora, que nega as múltiplas
possibilidades humanas, não serve a um projeto de educação popular (...). A
democratização da escola pressupõe o coletivo como espaço privilegiado para o
estabelecimento de relações solidárias que contribuam para a ampliação do
conhecimento de todos os envolvidos no processo (p.16). A escola pública amplia
sua qualidade ao aprender com os movimentos de educação popular a incorporar,
em seu cotidiano, o trabalho coletivo, as relações solidárias, os diferentes
saberes e a participação das diferentes pessoas. O encontro da escola pública
com a educação popular produz processos reflexivos e atuações que podem gerar práticas
que ampliem a face democrática da escola e aprofundem seus vínculos com os históricos
movimentos de emancipação humana (p.17).
3.
Mariano
F. Enguita. Os desiguais resultados das
políticas igualitárias. Classe, gênero e etnia na educação. Tradução de
Sonali Bertuol. Revista Brasileira de Educação. Set/Out/Nov/Dez 1996, n. 3.
Existem
poucas dúvidas, acredito, sobre o caráter central e paradigmático da política
educativa dentro do conjunto das políticas do Estado de bem-estar ou, mais
genericamente, das políticas sociais do Estado. É verdade que outros capítulos
sociais do orçamento podem mobilizar mais recursos, como os subsídios para os
desempregados, os serviços de saúde ou as pensões, mas nenhum deles, como a
educação, representa e incorpora a ideia de uma sociedade justa e de
oportunidades igualitárias. Todos esses serviços, e outros, asseguram à
população um acesso mínimo a certos bens (serviços públicos de saúde, educação
obrigatória, subsídio básico, pensão assistencial), mas, para além disso,
enquanto os outros possuem um caráter contributivo ou simplesmente reprodutivo
(subsídio de acordo com a contribuição anterior, distintos níveis de
assistência à saúde, pensões contributivas), o sistema educativo pretende
manter um caráter igualitário, inclusive de discriminação positiva (educação
compensatória, sistema de bolsas). O simples fato de que a política educativa
afeta os cidadãos de modo direto no início de suas vidas, enquanto as outras
mencionadas tendem a fazê-lo em fase mais avançada, ou mesmo ao seu final,
redunda na diferença indicada, do mesmo modo que a crença geral de que a educação
é por si mesma um importante determinante das oportunidades de vida,
individuais e sociais. Para usar um jargão atual, os serviços de saúde ou a
assistência social são políticas compensatórias, enquanto a educação é uma
política ativa (p.5). O alcance e a evolução das desigualdades
interterritoriais dependem, no plano supranacional, da divisão internacional do
trabalho e, no nacional, das características geográficas e históricas do país
e, em particular, do processo de formação e de consolidação do Estado (...). O Estado
tende — entre outros motivos, porque faz parte de seu próprio compromisso — a
homogeneizar a oferta educativa para além das fronteiras regionais e a reduzir
as desigualdades, dentro dos limites técnica e economicamente factíveis, entre
a cidade e o campo (p.6).
Passados e
processos similares
Embora
as desigualdades de classe, gênero e etnia sejam realidades distintas e
requeiram tratamentos diferentes, elas apresentam importantes paralelismos que,
em combinação com os contrastes associados, permitem uma melhor compreensão tanto
das desigualdades em si como das políticas com que se têm defrontado. Os
trabalhadores, as mulheres e as minorias étnicas seguiram processos até certo
ponto semelhantes com relação à escola. Em primeiro lugar, foram simplesmente
excluídos de escolas que eram da pequena e da média burguesias, para homens e não
para mulheres e para a etnia dominante (p.6). As escolas nasceram como um
fenômeno urbano, limitado à burguesia — no sentido primitivo — acomodada e a um
setor da pequena burguesia vinculado ou candidato a vincular-se a funções
eclesiásticas, burocráticas ou militares (p.6-7). Os demais, os camponeses e,
em boa medida, os artesãos, para não falar do resto — os que não tinham terras
nem ofício, o protoproletariado das cidades —, estavam excluídos de direito ou
de fato. As mulheres, por sua vez, foram excluídas de fato — eram criadas junto
a suas mães — ou incorporadas a “escolas” nas quais nem sequer se ensinavam as
primeiras letras, mas apenas disciplina, piedade e boas maneiras. As minorias
étnicas, por fim, acumularam episódios de exclusão, expressa até muito
recentemente (...). Há dois bons indicadores disso, normalmente ignorados por
essa história da educação que se confunde com a história das doutrinas
pedagógicas. O primeiro está nas próprias doutrinas: ao contrário do que às
vezes se afirma e quase sempre se deixa entender explicitamente, a Ilustração
[o Iluminismo], corrente de pensamento que podemos situar justamente nas
origens da pedagogia da época contemporânea, não foi um movimento
inequivocamente favorável à educação dos trabalhadores, das mulheres e das
minorias étnicas ou dos povos das colônias. Muito pelo contrário. A maioria dos
philosophes (...) foi abertamente hostil
à educação popular (...). A outra corrente do pensamento ilustrado, os
economistas (e, com eles, os filósofos ingleses), nunca teve a menor dúvida de
que as classes populares não deveriam ser senão disciplinadas e capacitadas
para o trabalho. Quanto às mulheres, apenas Condorcet, entre todos os
ilustrados de primeira linha, advogou firmemente por sua educação em termos
equiparáveis aos dos homens. Finalmente, as doutrinas sobre a educação da razão
humana não eram aplicáveis de nenhuma forma aos povos “selvagens”, coisa que na
época era óbvia e não precisaria sequer ser mencionada, mas da qual se
encarregou de lembrar justamente um ilustre ministro francês com uma larga
experiência na administração colonial, Jules Ferry, ao afirmar que a Declaração
dos Direitos do Homem não havia sido escrita para eles. A segunda pista [do
processo de exclusão escolar] é dada pela história do magistério, concretamente,
do recrutamento ou formação de professores especiais para esses grupos: trabalhadores,
mulheres, minorias (p.7). [Depois,] esses grupos foram escolarizados de forma
segregada. Os trabalhadores e as classes populares o foram nas “escolas alemãs”
(assim chamadas na Itália), nas petites
écoles, nas escolas populares, nas Volkschulen
etc., que inicialmente não eram o nível primário de um sistema unificado, mas o
único nível e tipo de educação ao qual tinham acesso, enquanto seus coetâneos
das classes privilegiadas acorriam aos institutos, liceus, Gymnasia, public schools
etc., que contavam com suas próprias classes preparatórias para os de menor idade.
Esse dualismo ainda está fortemente presente na linguagem escolar, não apenas
na conservação de alguns dos termos mencionados, como também em outros pares de
conceitos que em parte perderam seu sentido, mas que nos lembram que a atual
diferença de grau entre primário e secundário foi, outrora, uma diferença de
classe: mestre/professor, escola/colégio, aluno/estudante, instrução/ensino...
(p.8). As mulheres foram escolarizadas durante muito tempo em centros
separados, uma situação que em numerosos países se prolongou até há
relativamente pouco tempo. Se havia recursos materiais e econômicos e uma
densidade suficiente de população, criavam-se centros diferentes para cada sexo
já desde a escola primária. Se não, separavam-se meninos e meninas em classes
distintas dentro da mesma escola, ou pelo menos colocavam-se os meninos a cargo
do professor e as meninas, à parte, a cargo de uma professora ou da esposa do professor,
que não necessariamente [era uma docente]. Isso era acompanhado de programas de
estudo pelo menos parcialmente distintos na escola primária, e mais ainda na
secundária. Com as minorias étnicas foi a mesma coisa; inicialmente de direito,
como as escolas para negros do sul dos Estados Unidos, e depois de fato, como
as escolas dos bairros negros do norte (p.8). Numa terceira etapa, todos esses
grupos foram ou estão sendo incorporados ao que consideramos escolas ordinárias
(...). Mas essas escolas “ordinárias” são também as escolas da pequena e da média
burguesias, dos homens, da etnia dominante. Podemos dizer, então, que os
trabalhadores foram incorporados à escola burguesa, as mulheres à dos homens e
os ciganos à dos payos [não ciganos].
Para isso não se precisou de conspiração nem de nenhum plano perverso. Não é
que ninguém tenha se proposto a fazer uma escola hostil aos novos grupos, mas
simplesmente que ela se havia configurado previamente na medida dos outros.
Depois de tudo, os outros, ou seja, as classes média e alta, o gênero masculino
e a maioria étnica, não apenas estavam ali há tempos, como também aos mesmos grupos
já pertencia o professorado e, principalmente, as autoridades com capacidade de
decisão tanto em cada centro quanto na administração educativa de um modo
geral. Mas, sobretudo, sua cultura, suas atitudes, seus valores, suas formas
típicas de comportamento, suas visões de mundo de si e dos demais eram, como
ainda são em grande medida, as dominantes na sociedade global e, muito particularmente,
entre suas elites. Mais ainda: a escola havia sido fundada e estendida, pode-se
dizer, para propagá-las: para difundir e legitimar a “cultura culta”, ou seja,
o modo de vida da classe média; para socializar com vistas às instituições
econômicas e políticas extradomésticas, ou seja, a metade do mundo então
nitidamente masculina; por fim, para construir uma identidade nacional, vale
dizer, diferenciada do exterior e sem diferenças internas, e para fomentar o
progresso e o avanço da civilização, isto é, para aprofundar as distâncias em
relação às culturas pré-industriais (p.9).
Reformas
equiparáveis com resultados díspares
Os
resultados [dos três tipos de reformas implementadas: compreensividade, coeducação,
integradora] diferem mais ainda. Os mais brilhantes são, sem dúvida, os da
incorporação das mulheres. Hoje, elas apresentam taxas de permanência, acesso e
promoção superiores às dos homens em todos os níveis educativos, embora ainda
não tenham acesso aos mesmos ramos e especialidades (...). De modo geral,
pode-se dizer que as mulheres estão conseguindo uma educação similar à dos
homens de sua classe e etnia (existem alguns redutos masculinos e, certamente, outra
coisa é o acesso ao mercado de trabalho), o que equivale a afirmar que os
resultados das reformas em geral foram positivos para todas as mulheres, independentemente
de sua classe e etnia. Os efeitos da reforma compreensiva, por sua vez, foram
medianos ou medíocres por toda a parte, apesar de sua duração mais longa e da
maior ênfase posta nela (...). Quanto às minorias étnicas, temos de começar por
dizer que os resultados são muito mais díspares, mas também com maior tendência
ao desastre. Mais díspares, porque a dimensão da etnicidade é, por definição,
mais ampla, são, portanto, os resultados dos diversos grupos étnicos
minoritários. Existem minorias com resultados brilhantes, como acontece hoje
nos EUA com muitos dos grupos de origem asiática ou aconteceu antigamente por
toda a parte com os judeus (...). Contudo, junto a estas estão outras minorias
com resultados desastrosos, como os negros e os hispânicos na América do Norte
de origem dominante anglo-saxônica (pace
México), ou como os grupos ciganos tradicionalistas na Espanha. E, como as
minorias de piores resultados costumam ser incomparavelmente mais numerosas do que
as outras, a diversidade tende em conjunto, como foi indicado, ao desastre
(p.10).
Culturas,
subculturas e papéis
Os
grupos étnicos distinguem-se tipicamente uns dos outros por sua cultura, não
importa o que isso seja; as classes sociais fazem parte de uma só sociedade e
uma só cultura, embora possam — mas não necessariamente, ou não todas, de acordo
com o conceito de classe que utilizemos — alimentar variantes mais ou menos
distintas dessa cultura, o que se costuma chamar de subculturas; homens e
mulheres, porém, pertencem a uma mesma cultura e subcultura, diferenciando-se
simplesmente pelos distintos papéis sociais que estas lhes atribuem (p.11-12). As
classes sociais enquanto tais (isto é, se não se sobrepõem aos grupos étnicos,
como às vezes acontece) formam partes, altas ou baixas, dominantes ou
dominadas, cultas ou incultas, exploradoras ou exploradas, de uma mesma e única
cultura nacional (p.12). De ordem muito diferente é o caso dos papéis de
gênero. É claro que podem ser papéis abertamente distintos, sem dúvida díspares
e inclusive em boa medida contrapostos, mas sempre se trata de papéis atribuídos
e aprendidos numa mesma e única cultura (e subcultura), e para serem
desempenhados em seu interior (p.12-13). Nada disso teria importância se a
escola transmitisse e valorizasse uma cultura neutra, ou múltipla, ou alheia a
todos. Mas, como foi dito, cada grupo tardiamente incorporado o foi a uma
escola feita na medida do que estava do outro lado da divisória, de modo que este
joga sempre com vantagem e aquele com desvantagem. A cultura escolar não é,
como já se criticou exaustivamente, “a” cultura no singular, a única cultura
possível ou a melhor sem dúvida de todas as imagináveis, mas sim uma delas.
Mais do que isso: é uma cultura (étnica), uma subcultura (de classe) e talvez
destaque um tipo de papel (de gênero) (p.13). [Já a] composição social do
magistério teria variado em detrimento dos alunos de classe baixa e em favor
das mulheres, mas sempre mantendo-se bastante desfavorável às minorias étnicas.
Em termos culturais, de mentalidades, o balanço pode ser semelhante. Um docente
é, por definição, alguém que sobreviveu à escola e que decidiu ficar nela, o
que quer dizer que se sente ou que se sentiu em algum momento relativamente à
vontade entre suas paredes. É pouco provável, pois, que compreenda facilmente
quem rechaça a cultura, os modelos de comportamento, os valores e as promessas da
escola em nome dos que são próprios à fábrica, ao trabalho manual etc. Por
outro lado, o docente é educado numa cultura em parte real e em parte
pretensamente universalista, mas de qualquer forma com essa vocação, o que pode
se converter — e, amiúde, converte-se — num sério obstáculo para sua aceitação
de outras culturas. Não obstante, os valores de ordem, convivência, trabalho em
equipe, comunicação verbal etc., característicos da escola e necessários para
seu funcionamento regular, talvez pelo simples fato de ser uma instituição que ocupa
tantas horas da vida da infância, poderiam resultar mais favoráveis aos modelos
de comportamento típicos do gênero feminino do que aos de estrutura masculina.
Além disso, a feminização da docência poderia significar, pelo menos
potencialmente, um conflito entre segmentos de papéis para os meninos
(subordinados como meninos etc., mas dominantes como homens perante a
professora em posição inversa) e não para as meninas (p.15).
Graus de
identificação e estratégias
O
nível mais baixo de identificação é o que pode ocorrer em alguns grupos
étnicos, embora não necessariamente em todos. Em geral, a identificação
expressiva será baixa para qualquer grupo étnico, a não ser que se trate de
indivíduos especialmente decididos a esquecer suas raízes (o que pode chegar a
ser o caso de alguns grupos de imigrantes) e, ainda assim, com o limite de que
não se troca de língua, cultura, etc., como de casaco. De qualquer forma, será
logicamente inferior para as minorias do que para o grupo étnico dominante (e, a fortiori, para uma maioria dominada do
que para uma minoria dominadora: pense-se na luta da maioria negra na África do
Sul contra o ensino em africâner).
Sua identificação instrumental, em contrapartida, pode variar desde cotas muito
elevadas, se aceitam o modo de vida dominante e especialmente se têm fortes
desejos de se incorporar a ele (como mostra o êxito da americanização dos
imigrantes através da escola nos Estados Unidos), até cotas mínimas se querem
manter-se distanciados dele (em geral, os grupos desavantajados nessa relação,
que alguns antropólogos chamam eufemisticamente de “pluralismo estrutural”, ou
seja, economicamente segregados no emprego e no mercado e resignados com a
segregação). Isso poderia explicar, por exemplo, que a integração e os
resultados escolares de numerosos grupos ciganos espanhóis estejam atrás, por
exemplo, dos imigrantes mais recentes da região do Magreb. Para as classes
sociais, a coisa pode ser mais complicada, apesar de sua aparente simplicidade.
[Basta] apontar que os alunos da classe operária podem apresentar um nível
baixo de identificação com a escola, tanto expressiva quanto instrumental, diferentemente
de seus colegas de classe média. A baixa identificação expressiva é fácil de compreender:
seu uso da linguagem, seus valores, suas formas de comportamento, seus gostos
culturais etc. estariam mais distantes dos da escola, que são precisamente os
de outra classe. De certo modo, para eles, identificar-se com a cultura escolar
é abandonar a própria (...). Mais importante ainda é observar que, ao contrário
do que supõe o mundo do ensino e, em particular, o da maioria do professorado e
dos “experts” em matéria de educação, pode haver uma elevada dose de
racionalidade também na baixa identificação instrumental. Por um lado, a
promessa de mobilidade social que a escola lhes apresenta é, por sua própria
essência, certa em termos individuais, mas falsa em termos coletivos. Tal como
vaticinou o evangelho, são muitos os chamados, mas serão poucos os eleitos. Se
o indivíduo calcula o valor do jogo, ponderando o que lhe é oferecido e as
oportunidades realistas de consegui-lo, pode ser muito racional não participar
(se bem que isso aumenta as oportunidades dos outros e, portanto, também
contribui indiretamente para tornar mais racional a decisão desses outros de
participar). Finalmente, no caso das mulheres, tudo leva a um alto grau de
identificação e, portanto, de compromisso com a escola (p.16). Por um lado, se
consideramos os três grandes cenários possíveis que se abrem diante de uma
jovem na fase de sua vida em que deve tomar as decisões fundamentais sobre sua
trajetória escolar, a saber, a própria escola, o lar e o emprego, salta aos
olhos que a primeira é, certamente, (...) a mais igualitária e a que melhores
resultados produzirá para sua autoestima; lar significa trabalho doméstico e
subordinação, e emprego quer dizer salário baixo, qualificação escassa e
discriminação, tanto mais quanto antes se incorpore a eles; a escola, em
contraposição, é o único lugar onde, ao menos por um tempo, poderá medir-se com
os homens e o será pelos mesmos parâmetros — ou quase — que os homens, até o
ponto de permitir-lhe mostrar e demonstrar que é igual a eles e inclusive
melhor do que eles. Por outro lado, uma mínima visão e previsão do mercado de
trabalho lhe dirá que seus possíveis empregos normalmente estão nos setores
terciário e quaternário, que costumam requerer uma educação formal superior, e
que, para conseguir o mesmo emprego que o homem, precisará de mais e melhores capacidades
e/ou credenciais do que ele, motivo pelo qual a decisão mais adequada de sua
parte é armar-se, enquanto possa, de conhecimentos e diplomas. Na pior das
hipóteses (...), por fim, permanecer na instituição escolar é permanecer na
melhor das bolsas matrimoniais. O êxito feminino na educação e o êxito da
reforma coeducativa, pois, não devem ser considerados produtos de uma
surpreendente e feliz casualidade, nem, como pretendem alguns, o efeito
perverso da combinação entre autoritarismo escolar e submissão feminina (que [...]
explicaria o êxito das alunas, mulheres, como uma deplorável dádiva em troca de
sua indigna submissão e o fracasso comparativo dos alunos, homens, como um
abjeto castigo a sua saudável rebeldia), mas como resultados acumulativos de estratégias
individuais bastante ativas num contexto relativamente favorável (p.17).
4.
Fábio
Konder Comparato. O Princípio da
Igualdade e a Escola. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo (www.iea.usp.br/artigos).
Distinção
entre diferenças sociais e desigualdades sociais (...). Quando se fala em
diferenças sociais, estamos nos referindo àquelas diferenças que têm uma base
natural ou, então, são produto de uma construção cultural. Tem uma base natural
a diferença entre os sexos; isto provoca, inelutavelmente, uma diferença de comportamento
social, uma diferença de posição social. Por outro lado, existem diferenças fundadas,
digamos assim, num condensado cultural: costumes, mentalidades. Todos aqueles
que seguem uma mesma religião, que têm uma mesma visão do mundo e uma mesma
tradição tribal ou grupal, distinguem-se dos demais; são diferenças nítidas. Mas,
ao lado disto, existem também, em toda sociedade, desigualdades, e estas dizem
respeito não a diferenças naturais ou culturais, mas a um juízo de
superioridade e inferioridade entre grupos sociais, entre camadas sociais, entre
classes sociais. E este juízo de superioridade ou inferioridade acarreta,
necessariamente, uma apreciação de estima ou desestima de um grupo em relação
ao outro – de onde os preconceitos – e de valor social. Ou, então, fundamenta
posições jurídicas nítidas: tal grupo tem tais direitos próprios, que são
conhecidos, na técnica tradicional do Direito, como privilégios; outro não tem
direitos, é um subgrupo, não pode se igualar aos demais. Na longa evolução
histórica, a tendência é ir eliminando, aos poucos, as desigualdades sociais. Mas
fazer a distinção entre aquilo que é, necessariamente, o reconhecimento de uma
diferença natural ou cultural e, portanto, preservar essas diferenças e, por
outro lado, eliminar as desigualdades sociais, é muito difícil (p.1). Justamente
porque as diferenças naturais e culturais entre os seres humanos são fontes de
mais vida e maior enriquecimento humano, é preciso lutar contra as desigualdades
sociais, porque elas são fatores de enfraquecimento e, no limite, de autodestruição
da sociedade. A desigualdade social não é criada pela natureza, ela é criada
pelo homem, numa relação constante de força, de dominação e de exploração. E a
luta contra esses fenômenos patológicos, no campo social, é ininterrupta e
praticamente indefinida: quando se acaba de eliminar um foco de exploração
social, surge outro, de modo que a perspectiva de luta contra a desigualdade
social é contínua (...). A desigualdade é a marca registrada da sociedade
brasileira, desde os seus primórdios. Eu diria que a nossa desigualdade, que é
aquela que nós herdamos de todas as gerações que nos precederam – aquela que
nós cultivamos, acrescentamos e legamos aos nossos sucessores – é muito mais de
costumes e de mentalidade social do que de ordem jurídica. Claro que existem
ainda desigualdades de ordem jurídica. Uma delas, muito curiosa, é o fato de
que os diplomados de cursos oficiais de ensino superior e os ministros de
qualquer religião têm direito a prisão especial, de modo que, se o nosso
diploma, na sociedade globalizada e neoliberalizada, passa a valer cada vez
menos, pelo menos esse valor ele apresenta (p.2). A desigualdade oficial, a
desigualdade jurídica, marcada nas leis é uma exceção no Brasil (...). É uma exceção
fruto da hipocrisia, muito mais do que da sinceridade (...). Há um certo
aspecto na mentalidade brasileira que é a chamada cordialidade ou afetividade,
melhor dizendo, que se opõe ao confronto e se opõe, sobretudo, às posições muito
rigidamente marcadas e talvez (...) seja por isso que nós não gostemos das desigualdades
marcadas na legislação: nós preferimos cultivar a desigualdade naquele ambiente
de claro-escuro em que as coisas não aparecem com toda a sua nitidez. De
qualquer forma, se a desigualdade é muito forte na tradição, na mentalidade,
nos costumes, e se ela é superficial na legislação, poder-se-ia afirmar: “Mas
isto é um choque; isto dará sempre um conflito entre a ordem jurídica e a ordem
social ou cultural”. Pois bem, este choque não existe, porque nós sempre
chegaremos a um ponto de acomodação em que o Direito é respeitado, mas não
cumprido (...). Ora, por que razão nós chegamos a esse ponto em que a
desigualdade é a marca registrada da nossa sociedade? (...) [Há um] fator
oniexplicativo da nossa sociedade, ou seja, ele explica tudo (...). Há uma
certa organização mórbida, que seria o “caldo de cultura” de todas as
manifestações de crise. Esse caldo de cultura é o individualismo anárquico,
peculiar aos povos ibéricos. O que eu quero dizer com isso? É o fato de que não
existe, naturalmente, mesmo dentro dos grupos mais unidos, coesão social e
consideração de que as pessoas não são importantes, o importante é o conjunto
(p.3). Fundamental para uma compreensão mais nítida do que aqui se afirma é a
leitura e a releitura do livro capital de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Aqui, como em todas as
outras matérias, a norma fundamental é “conhece-te a ti mesmo”. O brasileiro precisa
se conhecer, se conhecer como povo; e, para isso, é preciso ir às grandes
fontes de reconhecimento da brasilidade; uma delas é Sérgio Buarque de Holanda.
Há certos marcos no reconhecimento da brasilidade que nunca serão apagados. Eu
diria, de forma muito sintética, que há quatro grandes marcos desse tipo, e são
todos deste século. Logo na abertura do século XX, Os Sertões, de Euclides da Cunha, que foi um choque cultural extraordinário.
Em segundo lugar, em 1933, Casa Grande
& Senzala, de Gilberto Freyre. Em 1936, Raízes do Brasil. Em 1942, de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo. Aquele
que tiver lido e meditado sobre essas grandes lições de brasilidade, terá,
certamente, uma base muito mais sólida para viver e conviver no Brasil (p.4). Este
fator predisponente da desigualdade, o individualismo anárquico, que Sérgio
Buarque de Holanda chama de personalismo, nunca existiu. [E justamente isso]
constitui um dos fundamentos do verdadeiro liberalismo (...). O liberalismo,
como filosofia e visão de mundo, é fundado, basicamente, na igualdade. E esta
igualdade é expressa, juridicamente, pela lei – a lei como norma geral e abstrata,
que se aplica igualmente a todos. Essas foram noções de combate, a partir de
fins do século XIX; noções de combate da burguesia, como classe montante,
contra o predomínio aristocrático. Para a burguesia, era fundamental que se
instituísse uma outra regra, um outro critério supremo que não fosse o bom
nascimento, a boa estirpe. E esse critério supremo era o mérito: as pessoas
concorrem igualmente, disputam igualmente, fundadas no mérito e, portanto, elas
têm iguais chances, e a lei é igual para todos (p.4). O fato é que, para a
tradição burguesa, que é a tradição liberal, do liberalismo (...) a lei é uma
regra geral abstrata, que não faz acepção de pessoa, que põe todo mundo em pé
de igualdade (...). Daí porque nós nunca tivemos esse respeito pela lei; nós
sempre achamos que as coisas se resolvem com “jeitinho”. E um “jeitinho” o que
é? É justamente a convicção de que cada um de nós é uma individualidade própria
e todos os problemas têm que ser adaptados a nós. Nós não devemos nos adaptar aos
problemas e, sobretudo, nós não devemos nos submeter a uma regra geral. A regra
geral existe lá em cima, como uma espécie de dogma, que nós veneramos, mas não
aplicamos. Nós queremos um tratamento personalizado, individualizado (...). Desigualdade
entre ricos e pobres. Para entender isso, é preciso remontar na corrente
histórica. Portugal foi, curiosamente, o primeiro país ocidental a instaurar a
ordem burguesa. O que significa ordem burguesa? É a abolição oficial – ou pelo
menos oficiosa – dos estamentos tradicionais e seus privilégios de nobreza, clero,
militares. A Antropologia chegou à conclusão de que as sociedades indoeuropeias
têm um modelo fundado em três raízes: elas são sempre organizadas no sentido de
haver um estamento de guerreiros e nobres, um de clérigos e autoridades
espirituais e o terceiro de trabalhadores. Isto prevaleceu até, digamos assim,
as primeiras grandes revoluções burguesas do século XIX. Mas Portugal foi uma
exceção notável. Já no século XIV, quem analisa, ainda que em superfície, a
sociedade portuguesa percebe que, com a chamada Revolução da Dinastia de Aviz,
a burguesia suplantou a nobreza. E a burguesia chegou com os seus valores, com os
seus costumes, com a sua visão de mundo; e essa visão de mundo tem um símbolo,
que é o cifrão, ou seja, a burguesia é o dinheiro. O dinheiro é o “deus Mamon”
para toda a classe ou, se quiserem, o estamento burguês. Tanto isso é verdade,
que os historiadores portugueses assinalam o fato de que já no século seguinte,
o século XV – final do século XV –, El
Rei era o primeiro mercador do reino, quando nos outros países, em volta de
Portugal, todo nobre que comerciava decaía da nobreza. Em Portugal, o principal
nobre, ou seja, o nobre dos nobres, o primus
inter pares, que era o rei, era o principal comerciante do reino (p.6). Isto
levou, certamente, à construção de uma sociedade em que o poder, o prestígio, o
valor social estão indissoluvelmente ligados à propriedade, à riqueza, ao domínio
econômico (...). No Brasil, é preciso não esquecer que nós esboçamos a nossa
organização social com um regime patrimonial. As capitanias hereditárias eram
espécies de feudos, que eram concedidos pelo Rei, não a nobres, a pessoas consideradas
valorosas, mas não necessariamente da aristocracia (...). E, com base nisso,
todo aquele que tinha a propriedade da terra, tinha poder político: ele podia
até cunhar moeda, ele organizava as forças armadas – muito rudimentares, evidentemente,
da época –, ele organizava o comércio, ele funcionava como juiz e executava
sentenças. Tudo isso com base na propriedade da terra. O que é isso, se não o feudalismo?
É claro que esse feudalismo, desde o início, foi sempre achamboado, como disse
Euclides da Cunha, mas era a consagração de que, realmente, senhor e dono é o proprietário:
nós devemos obediência a quem tem poder econômico (...). Com a introdução da
industrialização, ligada à imigração, nós tivemos, não um enfraquecimento desse
coronelismo, desse domínio fundiário, mas sim a sua transformação em algo
urbano. As correntes imigratórias que vieram ao Brasil, sobretudo no final do século
XIX, início do século XX, eram muito marcadas por esse domínio do dinheiro
(p.7). O contraste sempre foi este, ou seja, o outro lado, aquele que não tem
dinheiro, aquele que não tem riqueza, aquele que não tem posse de bens,
sobretudo aquele que não tem escravo, não presta; ele é o lado negativo. Os
pobres são sempre um peso (p.7-8). E esta situação – a indiferença pelo pobre,
indiferença marcada, contínua, constante, teimosa – foi muito bem assinalada
num outro livro, O Povo Brasileiro (...) [de] Darcy Ribeiro, me parece uma
iluminação: a raiz explicativa da nossa evolução histórica está, sem dúvida, na
desigualdade entre ricos e pobres – que é alguma coisa de fundamental. É
importante notar ainda que isto gera toda uma série de consequências: uma
delas, a mais comum, é o preconceito. Mas um preconceito curioso, porque ele
raramente é reconhecido. Se todos nós, no fundo de nós mesmos, reconhecemos que
temos preconceito racial, mas jamais ousamos proclamar, são raríssimos os
brasileiros que reconhecem que eles têm preconceito contra o pobre. Existe
outra coisa, ainda mais curiosa: o preconceito existe, muito forte, do pobre contra
o pobre (p.8). Isso significa algo de muito sério: a principal desigualdade da
sociedade brasileira, a principal fonte de preconceitos e de atritos e,
certamente, o grande fator de atraso é inconsciente. A maioria esmagadora da
população brasileira acha que não tem nenhum preconceito contra pobre; que o
pobre é igual a todos, que não há nenhum problema etc. (p.9). O segundo grande
foco de desigualdade também é muito forte, ainda que eu sustente que ele está
abaixo da desigualdade entre ricos e pobres, é a desigualdade entre brancos e
negros. A desigualdade entre brancos e negros pode ser aferida, de maneira indireta,
se nós a compararmos com o relacionamento entre brancos e índios (p.10). A
escravidão, no Brasil, teve uma peculiaridade em relação a outros países, e que
foi o fato de ser uma escravidão universal. O negro escravo não era apenas o
trabalhador; ele era também o companheiro de casa. A distinção entre escravos
do eito – aqueles que trabalhavam na roça – e escravos de casa (escravos de
fora e escravos de dentro) marcou profundamente a nossa psicologia. Nós que
estamos numa civilização urbana, observamos isto, por exemplo, no tratamento
que dispensamos ao empregado doméstico: há sempre uma espécie de travo, ou de
fermentação que vem da escravidão, porque o escravo doméstico era tratado de
maneira diferente. A promoção do escravo era sair da senzala e ir para a casa
grande (p.10). Toda esta política de luta contra a desigualdade, que é marcada
justamente pela reformação da sociedade brasileira, pode ser dividida em dois
campos: a educação propriamente dita e o campo institucional. Uma das grandes
falhas dos políticos, de modo geral, e das políticas de educação no país, é o
fato de não terem prestado atenção à importância das instituições. As instituições
são também pedagogas, como dizia Platão. São elas que nos ensinam, quando não
seja pelo constrangimento que uma instituição em funcionamento acarreta para a
nossa liberdade ou a nossa licença (p.12-13).
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