sábado, 9 de junho de 2018

UNIVESP – Curso de Pedagogia - Disciplina: Sociologia da Educação - Semana 4 - As relações entre desigualdades sociais e desigualdades escolares joralimaTEXTO

UNIVESP – Curso de Pedagogia
Disciplina: Sociologia da Educação
Semana 4 - As relações entre desigualdades sociais e desigualdades escolares


joralimaTEXTO


Os objetivos dessa semana são:
                                
1. Entender a relação que ocorre entre as desigualdades sociais e as desigualdades escolares;
2. Compreender que políticas educacionais igualitárias podem apresentar resultados desiguais;
3. Refletir sobre a relação contraditória entre escola pública e exclusão social;
4. Compartilhar com seus colegas não só as dúvidas, mas também a reflexão e as inquietudes que ela traz na aprendizagem desses conteúdos.

Videoaula - 1

A função social da escola | UNIVESP
Profa. Ana Maria Klein

A extensão da escola na vida das novas gerações. A escola é essencial à formação dos novos cidadãos, por ser a portadora dos saberes selecionados pela sociedade e dos seus valores. As crianças passam boa parte da sua vida dentro da escola (4 horas por dia, 5 dias por semana, 9 meses do ano, por 12 anos seguidos, no mínimo). Todos os jovens devem (ou deveriam) passar pela escola. O tempo fora da escola ainda reflete a importância da instituição: lição de casa, outras tarefas, os colegas, os trabalhos em grupo. Os adultos, quando conversam com crianças, geralmente se pautam pela vida escolar. A função da escola ao longo do tempo. Segundo Julio Vera Vila (2007, p.12), destacando o trabalho de Mariano Fernandez Enguita (A face oculta da escola), há três momentos de mudanças nas relações entre escola e sociedade, os quais foram denominados de: 1. suprageracional, 2. intergeracional e 3. intrageracional. Suprageracional. Antiguidade. Grupos reduzidos (escribas e sacerdotes) tinham uma educação institucionalizada. Era a elite da sociedade. Aos demais, bastava a educação familiar ou da comunidade, porque o saber necessário para a vida era aprendido durante a vida cotidiana. A escola tem um alcance social muito pequeno. Intergeracional. Revolução industrial e transformações sociais. Surgimento do Estado moderno. A família já não é capaz de ensinar ao jovem tudo o que ele precisa saber para participar na sociedade. Parte da educação dos jovens é delegada à escola, pois a urbanização e a ciência produzem novos conhecimentos. A escola segue sendo elitista, pois apenas o básico da educação é aberto a muitos; a progressão acadêmica seguiu sendo possível apenas aos privilegiados socialmente. Intrageracional. É o hoje. Transformações aceleradas afetam a vida das pessoas. Informação e conhecimento assumem um papel cada vez mais decisivo em todos os aspectos da vida. Assim, apenas a formação inicial e centrada na transmissão de conteúdos não é mais capaz de suprir as necessidades educacionais dos indivíduos, faz-se necessária a formação ampla e continuada. Não há certezas educacionais (garantia de emprego com o término da escolarização). Escola e complexidade social. Os diferentes papéis da escola acompanham a complexidade da própria sociedade. Escola e sociedades estáveis. Em sociedades estáveis, a escola tem um papel restrito, resumindo-se, praticamente, à leitura e à escrita, pois os conhecimentos necessários à vida social mantêm-se durante várias gerações. Daí o conhecimento ser suprageracional. Escola e sociedades que mudam entre as gerações (de uma para outra). A escola transmite saberes como leitura e cálculo que a família já não dá conta de ensinar. Escola e sociedades em constante mudança. As mudanças são rápidas, grandes e constantes, dentro de uma mesma geração. Papel da escola torna-se imprescindível, para preparar os indivíduos para a vida social. Lança desafios para a escola se enquadrar nessa nova dinâmica, tornando-se mais aberta e mais flexível.




Videoaula - 2

Igualdade, desigualdade e escola
Profa. Ana Maria Klein

Desigualdade dentro da escola. Como se manifesta? Para a pesquisadora Vanda Mendes Ribeiro, o desafio é fazer com que todas as crianças aprendam. A escola mais justa é aquela que consiga fazer com que mais crianças, mesmo com suas desigualdades, aprendam o que precisa ser aprendido. O vídeo apresenta dados de um estudo da UNICEF sobre as desigualdades sociais e a educação. Por exemplo: crianças negras e as de áreas rurais têm quase 70% mais de chance de viver na pobreza, se compradas às brancas e urbanas (Fonte: Unicef – Todas as crianças na escola em 2015). Exibe o mapa do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, que mostra a distribuição de crianças alfabetizadas até os 8 anos (fonte: PNAIC), o que demonstra a desigualdade regional, já que o Norte e Nordeste exibem os números mais negativos. Escola reprodutora ou transformadora das desigualdades sociais? Conclui que a escola reproduz a desigualdade social, tornando-a uma desigualdade escolar. Papel da escola na reprodução das desigualdades sociais. Questiona-se se esse papel reprodutor da escola é universal. Cita estuda conduzido por Francois Dubet na Europa, envolvendo pesquisadores de vários países europeus. O que acontece depois da escola, como as sociedades utilizam e valorizam os títulos escolares? Para Dubet, ao se perceber o valor que a sociedade dá para os títulos escolares, se consegue compreender o papel da escola como reprodutora ou não das desigualdades sociais. A influência do diploma é mais elevada quando o emprego é relativamente raro e as desigualdades escolares são grandes. Posição social e o diploma. Quando a influência da escola é grande, não apenas as desigualdades de carreiras escolares são importantes, mas também a reprodução é maior. Tratam-se de sociedades rígidas, nas quais a atribuição das posições é decidida por diplomas, eles próprios decididos pela origem social. O peso da renda dos pais explica a elevada renda dos filhos no futuro. Dubet verificou que existem sistemas igualitários, que individualizam as pedagogias, de modo que a homogeneidade da formação não seja uma maneira de marginalizar aqueles que não estão dentro da maioria. Redes igualitárias. Escolas que selecionam mais tarde (passam um grande tempo com um currículo comum, não separando os alunos pelo nível de rendimento logo cedo, buscando atender essas diferenças dentro da sala de aula, respeitando, portanto, a heterogeneidade), que mantêm todos os alunos juntos e que individualizam as pedagogias. São, portanto, menos reprodutivas e mais igualitárias.


Vídeo de Apoio
Excelência com equidade: as lições das escolas brasileiras | Fundação Lemann

Ernesto Faria. Coordenador do estudo de Excelência com Equidade. Coordenador da Fundação Lemann. É possível garantir o aprendizado de todos os alunos. A pesquisa, contudo, não inclui todos, pois busca ver como algumas escolas conseguem assegurar o aprendizado em meio a condições adversas, justamente para se tentar aprender com essas escolas para depois melhorar a educação de todas as crianças brasileiras.

Vídeo de Apoio
Jogo do privilégio branco | ID_BR

Depoimentos sobre raça, cor, privilégios. Treze pessoas responderam 50 perguntas sobre privilégio racial. As respostas definem passos à frente ou atrás em um piso demarcado por listas amarelas e simétricas, onde as treze pessoas estão perfiladas. No final, o jogo se apresenta como uma campanha.

Fichamento dos textos

1.

François Dubet. A escola e a exclusão. Tradução: Neide Luzia de Rezende. Cadernos de Pesquisa, n. 119, p. 29-45, julho/ 2003.

[O texto aborda basicamente a realidade da França, sendo que alguns pontos parecem extrapolar a educação francesa]. O tema da escola e da exclusão remete a toda uma série de problemas que é importante distinguir se quisermos ver a questão de um modo um pouco mais claro (...). Vários problemas serão aqui abordados. O primeiro deles é o lugar da escola numa estrutura social perpassada pelos mecanismos de exclusão (...). O segundo tipo de problemas concerne à análise dos mecanismos propriamente escolares que engendram uma segmentação escolar, determinante na formação dos percursos de exclusão. Por fim, evoca as consequências dessa mutação estrutural sobre a natureza das próprias experiências escolares, a dos professores e a dos alunos (p.30).

Da exclusão social à exclusão escolar: um processo duplo

Para uns, o desemprego e a precariedade dos jovens advêm da falta de adequação entre formação e emprego (...). [Essa argumentação repousa] sobre um estranho silogismo que “demonstra”: já que todos os jovens egressos das [escolas de ponta] ou dos cursos superiores têm um emprego, bastaria que todos os jovens atingissem esse nível de qualificação para que tivessem um emprego (p.30-31). Para dizer de modo analítico, a exclusão social dos jovens não advém só das relações de reprodução. Para outros, os “defensores” da escola, o sistema educacional é totalmente “inocente” em face da exclusão. Não somente o desemprego dos jovens é independente do sistema de formação, mas todas as dificuldades da escola, a “violência”, a débil motivação dos jovens, vêm de fora, do capitalismo e do mercado (...). Essa dupla retórica que acusa ora o serviço público, ora o mercado é também uma maneira de não tocar num problema relativamente complexo e “clássico” (...). As relações entre esses dois conjuntos foram profundamente transformadas ao longo do século, vinculando estreitamente a escola aos mecanismos de exclusão, sem fazer dela, entretanto, a “culpada” como alguns pretendem (p.31).

A escola preservada da exclusão

É preciso lembrar a relação muito particular da escola e da sociedade, estabelecida pela escola republicana do final do século XIX: relação caracterizada, de um lado, por uma grande distância entre a escola e a produção, de outro, por uma forte adequação da oferta escolar ao sistema das classes sociais (p.31). Mas a marca essencial desse sistema [na França] era o dualismo escolar e o tipo de recrutamento das diversas clientelas. A escola primária acolhia as crianças do povo, o liceu, aquelas da burguesia, e o ginásio funcionava ao mesmo tempo como uma triagem e como a escola das crianças das camadas médias. Esse modo de recrutamento, dominante até o início dos anos 1960, é caracterizado por uma seleção que ultrapassa a escola. Não é diretamente a escola que realiza as grandes operações de distribuição dos alunos, são as desigualdades sociais que comandam diretamente o acesso às diversas formas de ensino. Uma das consequências desse sistema é que a escola aparece justa e “neutra” no seu funcionamento, enquanto as injustiças e as desigualdades sociais é que são diretamente a causa das desigualdades escolares. Num tal sistema, a escola intervém relativamente pouco sobre o destino dos indivíduos, que é, antes de mais nada, um destino social (...). É importante lembrar que, até o início da década de 1970, os diplomas eram produzidos em quantidade menor ou igual à dos empregos qualificados a que correspondiam. Nos anos 1930, a metade dos franceses não tinha o certificado de estudos, os bacharéis e os estudantes eram raros e o valor social dos diplomas era garantido pela sua escassez. O ensino profissionalizante oferecido pelos centros de aprendizagem e pelas escolas profissionais de nível médio também controlava o recrutamento, a fim de assegurar a absorção de seus egressos (p.32-33). A escola estava como que protegida da exclusão social. Estava tão mais protegida que os alunos, os quais hoje [seriam] qualificados como “excluídos”, saíam da escola assim ao concluir a escolaridade obrigatória e não “incomodavam” a vida dos ginásios nem a dos cursos colegiais e muito menos a da universidade. Esse sistema foi profundamente abalado e novas relações estabeleceram-se entre a escola e a sociedade, fazendo surgir os problemas da exclusão no coração da vida escolar (p.33).

Produção e reprodução

A escola não é mais “inocente”, nem é mais “neutra”; está na sua “natureza” reproduzir as desigualdades sociais produzindo as desigualdades escolares (p.34). A seletividade escolar encaminha os alunos mais fracos para as trajetórias menos qualificadas, o que, por sua vez, aumenta suas “chances” de desemprego e de precariedade. No outro extremo, os diplomas nos níveis mais elevados oferecem uma proteção relativa diante do desemprego. Na medida em que a reprodução não é uma fotocópia exata das desigualdades sociais, é possível ver bem como a escola desempenha um papel autônomo na formação dos mecanismos de exclusão, uma vez que o aluno do meio favorecido que fracassa na escola é ameaçado de exclusão, enquanto o bom aluno do meio desfavorecido vê aumentar suas chances de inserção profissional. Como um e outro desses percursos não são estatisticamente raros numa escola de massas, é importante que se interrogue sobre o próprio papel da escola (p.35).

Os mecanismos da exclusão escolar

A análise do papel da escola nos mecanismos da exclusão escolar implica isolar, evidentemente de maneira teórica e abstrata, os mecanismos e os fatores pelos quais a escola “acrescenta”, alia fatores de desigualdade e de exclusão que ultrapassam a simples reprodução das desigualdades sociais. Trata-se dos diversos “efeitos” escolares que remetem à própria ação da escola. Pode-se sensatamente pensar que, se a soma desses “efeitos” não constitui nem a única nem a principal causa da desigualdade e da exclusão, representa, entretanto, um papel que não pode ser negligenciado (p.35).

Os processos escolares

Entre as consequências diretas da massificação escolar, é preciso considerar o conjunto dos mecanismos de diferenciação interna que estrutura o sistema. A oferta escolar não é homogênea e nem produz sempre o mesmo desempenho; não tem sempre a mesma eficácia (p.35). Observa-se que os alunos com dificuldades são orientados para trajetórias escolares mais ou menos desvalorizadas no interior de uma hierarquia extremamente rígida, que impede, quase por completo, o retorno para as carreiras honrosas ou prestigiadas (...). Pensemos nas consequências das escolhas das escolas, que reforçam a concentração dos alunos menos favorecidos e com desempenho pior em certos estabelecimentos e, no interior destes, em certas turmas (...). O mesmo se passa com a escolha para a formação das classes homogêneas. Estas (Duru-Bellat, Mingat, 1997) não aumentam muito o desempenho dos melhores alunos, mas enfraquecem nitidamente aquele dos alunos mais fracos. Pode-se assim evocar os mecanismos, mais sutis ainda, relativos às decisões que beneficiam sempre os alunos mais favorecidos, cujo desempenho é por antecipação considerado melhor já que eles se beneficiariam de um suporte familiar mais eficaz (Duru-Bellat, Mingat, 1985). No final das contas, os alunos mais favorecidos socialmente, que dispõem de maiores recursos para o sucesso, são também privilegiados por um conjunto de mecanismos sutis, próprio do funcionamento da escola, que beneficia os mais beneficiados. Essas estratégias escolares aprofundam as desigualdades e acentuam a exclusão escolar na medida em que mobilizam, junto aos pais, algo que não é só o capital cultural, este entendido como um conjunto de disposições e de capacidades, especialmente linguísticas. Apela a competências muito particulares referentes aos conhecimentos das regras ocultas do sistema. A escola espera que os pais sejam pessoas informadas, capazes de orientar judiciosamente seus filhos e ajudá-los com eficácia nas suas tarefas. Ao mesmo tempo, fica claro que essa expectativa é cada vez maior e situa-se cada vez mais cedo. Quanto mais os métodos pedagógicos são “ativos”, mais eles mobilizam os pais, seus recursos culturais e suas competências educativas (p.36).

O deslocamento das pesquisas

Imperceptivelmente, a sociologia da reprodução foi substituída pelo estudo dos problemas sociais na escola e pela análise dos mecanismos internos à escola (...). A geografia social da escola pouco a pouco se transformou, com a concentração dos problemas sociais nos bairros “difíceis”. Para que nos convençamos disso, basta observar rapidamente as transformações do vocabulário dos atores e da instituição. O problema das escolas e dos alunos “difíceis” se impôs, em poucos anos, como o ponto no qual se focaliza o conjunto dos problemas sociais: periferias, desemprego, imigração, delinquência, violência, abandono escolar. No vocabulário dos atores, o aluno proveniente da classe operária foi substituído pelo aluno difícil e com dificuldade, que é definido menos por sua situação de dominação do que por sua exclusão. Os professores mudaram o vocabulário: as crianças do povo para as quais a escola deveria assegurar a igualdade de oportunidades são substituídas pelos alunos das regiões “sensíveis”, que é importante integrar à sociedade. Lá onde se via um filho de operário, se vê um “caso social” (p.37). Confrontada com a exclusão social, a escola é levada a se interrogar a respeito de uma de suas “funções” fundamentais: sua capacidade de integrar os indivíduos num quadro institucional e cultural (...). O encontro da exclusão social e da escola renovou profundamente a Sociologia da Educação (p.37).

A escola questionada

O acordo latente que ligava a escola à sociedade se desestabilizou muito. As expectativas implícitas das famílias não são mais congruentes com os projetos da escola, provocando assim o sentimento de uma crise de legitimidade da escola. Essa crise está relacionada ao peso do fracasso escolar na experiência dos pais, às suas expectativas desmesuradas, mas, sobretudo, à percepção de um declínio da utilidade social dos diplomas (p.39).

A experiência da exclusão. O sujeito ameaçado

O problema da exclusão não é apenas saber, de maneira mais ou menos incisiva, quem é excluído, mas de conhecer também os processos e os efeitos dessa exclusão sobre os atores (...). A escola afirma a igualdade de todos. Ela não afirma apenas a igualdade de oportunidades, mas a igualdade de talentos e potencialidades. A ideologia do dom recuou sensivelmente e todas as crianças têm, a priori, o mesmo valor, mesmo admitindo que as condições sociais podem afetar o reconhecimento de suas qualidades e o seu desenvolvimento. A massificação reforçou essa crença, que é sobretudo um postulado étnico, cada um tendo o direito, “em princípio”, de aspirar a todas as ambições escolares. Esse princípio de igual valor e de igual dignidade dos indivíduos, de igual respeito que lhes é devido, está no centro de uma ética democrática reforçada pelas mutações de representações da criança, que fazem dela um indivíduo, um sujeito, e não apenas um aluno ou ser ainda incompleto. É importante ressaltar que essa representação do sujeito tem algo de “heroico”, de difícil e de exigente, pois ela supõe que cada um seja “soberano”, dono de si mesmo, responsável por uma vida que não pode mais ser totalmente reduzida a um destino. O sujeito da modernidade é o autor de si mesmo, tanto de suas virtudes como de seus vícios. Por outro lado, não poderia ser diferente, a escola é meritocrática. Ela ordena, hierarquiza, classifica os indivíduos em função de seus méritos, postulando em revanche que esses indivíduos são iguais (p.40). Os alunos excluídos estão ameaçados de se sentir destruídos por sua exclusão, que seria o signo de sua própria “nulidade”. Em face desse desafio, muitas estratégias podem ser acionadas (p.41).

Retraimento

A mais antiga e a mais silenciosa é a do retraimento. Os alunos malsucedidos descobrem pouco a pouco que seu trabalho “não se paga”, que eles não conseguem obter resultados honrosos apesar de seus esforços. Descobrem que as exigências dos professores quanto ao “trabalho insuficiente” são apenas um modo de proteger a dignidade deles. Descobrem assim que os esforços para remediar não são eficazes. Então os alunos decidem não mais fazer o jogo, não mais participar de uma competição na qual eles não têm nenhuma chance de ganhar. Eles se abandonam ao ritualismo escolar, ao respeito exterior das regras escolares ao mesmo tempo em que se liberam subjetivamente de qualquer envolvimento escolar (Barrère, 1997). Essa estratégia não é isenta de racionalidade se se admite que ela permite aos alunos preservar sua dignidade, sua autoestima, já que eles próprios contribuem para sua exclusão. No fundo, trata-se de uma autoexclusão amena graças à qual os alunos salvam uma parte de sua autoestima tendo em vista que eles nada fazem para obter êxito. Eles perderam a partida, mas a honra está salva, uma vez que eles nada fizeram para ganhar, instruídos por uma longa história de fracassos. Por parte dos professores, essa estratégia de autoexclusão é percebida como uma crise de motivação, como uma maneira de se proteger dos desafios escolares e escapar às críticas (p.41-42).

O conflito

A estratégia do conflito é uma outra maneira de responder às tensões estruturais do sistema. Dentre as violências escolares que são hoje percebidas como o sintoma mais manifesto da exclusão na escola, é importante distinguir várias lógicas e várias significações. Uma delas é sem dúvida a entrada na escola das violências, das desordens e das crises sociais: gangues, roubos, insultos... Nesse sentido, a escola é sem dúvida ameaçada pela exclusão social. Mas existem também violências escolares apresentando-se como reações à violência da escola: agressões contra os professores, roubo de materiais... A explicação para esse tipo de violência não se encontra numa permissividade excessiva nem no uso de rédeas curtas. Inúmeros alunos sentem seus fracassos como atentados a sua dignidade, a sua honra, a sua “cara”. Como não podem explicar esse fracasso por meio de causas sociais, são levados a sentir-se como os responsáveis e os culpados; [assim] escolhem atribuir essa exclusão escolar, sancionada nas salas de aula e nos estabelecimentos menos categorizados, aos próprios professores. A violência contra a escola e os professores é ao mesmo tempo um protesto não declarado e uma maneira de construir sua honra e sua dignidade contra a escola (p.42). Neste caso, também se pode dizer que as violências dos excluídos antecipam sua exclusão, mas ocorre que essas condutas advêm das situações e das próprias tensões escolares (...). Tendemos a conceber a exclusão escolar como problemas circunscritos a um conjunto de bairros, estabelecimentos e clientelas “difíceis”. Evidentemente, essa percepção não é falsa e muito se aprendeu sobre esses casos na medida em que a demanda de conhecimentos e de estudos se acentuou. Entretanto, a exclusão é o indicador de uma transformação da escola que ultrapassa amplamente os casos agudos de exclusão. O problema da exclusão nos ensina que as relações da escola e da sociedade se transformaram e que a escola perdeu sua “inocência”. Ela própria é o agente de uma exclusão específica que transforma a experiência dos alunos e abre uma crise de sentido nos estudos, às vezes até da legitimidade da instituição escolar (p.43). A escola integra mais e exclui mais que antes, apesar de seus princípios e de suas ideologias, e funciona cada vez mais como o mercado, que é, em sua própria lógica, o princípio básico da integração e da exclusão (p.44).

2.

Maria Teresa Esteban. Educação popular: desafio à democratização da escola pública. Cad. Cedes, Campinas, vol. 27, n. 71, p. 9-17, jan./abr. 2007.

As reflexões sobre a escola pública no Brasil passam necessariamente por suas articulações com as classes populares e com a dinâmica de produção do fracasso escolar. No Brasil, falar de fracasso e exclusão escolar obriga a referência às classes populares (...). Os processos instituídos com o sentido de ampliar o acesso à escola e de nela garantir a permanência dos alunos não expressam claramente o compromisso com a educação popular (...). Não se considera que um número expressivo de professoras e professores é das classes populares, tampouco que o trabalho será realizado com alunos e alunas oriundos desse segmento social e que seu desenvolvimento terá como parceiros familiares das classes populares (...). [Assim,] a análise do cotidiano escolar evidencia que a atuação na escola pública, hoje, não pode desconsiderar as classes populares que a constituem (p.10). Um dos desafios centrais [é] a promoção de ações capazes de fazer da escola pública uma escola de educação popular e não meramente uma escola para as classes populares. Nesse percurso, é relevante interrogar as relações entre esta mudança de perspectiva e a produção das práticas que orientam a dinâmica pedagógica (p.11).

Homogeneidade e desigualdade no cotidiano escolar

Ainda que a incorporação à escola de amplos setores sociais até então dela excluídos se apresente como consensual, análises sobre a função social da escola exprimem tanto suas relações com a democratização do conhecimento, como apontam sua participação nos processos de seleção e exclusão social. A escola apresenta-se com sua ambivalência, posto que, mesmo quando oferece as mesmas oportunidades a todos, exclui (p.11). No entanto, as buscas cotidianas pela igualdade de oportunidades também produzem inclusão. A visibilidade crescente da diferença como um de seus elementos constitutivos vem favorecendo, em muitos casos, a configuração de práticas mais favoráveis àqueles nomeados como “diferentes” e a instauração do debate sobre a relação entre diferença e desigualdade (p.11-12). Evidencia-se a lógica perversa que também constitui a dinâmica escolar: mais do que ser igual, é preciso parecer igual. Mantém-se na escola a lógica colonial, traduzida por Bhabha (1998) na expressão “quase o mesmo, mas não exatamente”, que evoca, na perspectiva do colonizador, a diferença como falta, como deficiência, que justifica a subordinação (p.13). Mantida a lógica da subalternidade, não expressar os conhecimentos valorizados na escola faz com que as crianças passem a constituir uma categoria – as que fracassam na escola – desqualificada no cotidiano escolar. A diferença, quando encontrada, não produz uma diferença no olhar, que continua buscando o mesmo e continua encontrando o mesmo, mantendo a coerência e a previsibilidade dos resultados escolares. É importante ressaltar que os estudantes, mesmo não correspondendo ao padrão, são cada vez menos excluídos da escola. Verifica-se a produção de lugares desqualificados – quase os mesmos –, nos quais são confinados, mesmo que simbolicamente, os que não aprendem. A exclusão da escola dá lugar à exclusão na escola, que ressalta a manutenção do conflito presente na dinâmica inclusão/exclusão (p.14).  

Possibilidades emancipatórias e contextos de exclusão

O reconhecimento da heterogeneidade, que caracteriza o cotidiano escolar como aspecto produtivo, evidencia a necessidade de se aprender a conviver democrática e solidariamente com as diferenças, tomando-as como aspectos indispensáveis ao permanente processo individual e coletivo de produção de conhecimentos. Parte desse movimento vincula-se à redefinição das práticas pedagógicas, predominantemente configuradas pela ideia de homogeneidade (p.14). A escola pública é um espaço importante na disputa dos projetos de sociedade. Assumi-la como lugar de educação popular é parte desta disputa (...). O cotidiano escolar deixa evidente que a diferença não é a exceção, é a norma. Portanto, as práticas pedagógicas se democratizam e se vinculam aos processos de emancipação social, quando são realizadas com as diferenças e não contra as diferenças. A qualidade excludente e redutora, que nega as múltiplas possibilidades humanas, não serve a um projeto de educação popular (...). A democratização da escola pressupõe o coletivo como espaço privilegiado para o estabelecimento de relações solidárias que contribuam para a ampliação do conhecimento de todos os envolvidos no processo (p.16). A escola pública amplia sua qualidade ao aprender com os movimentos de educação popular a incorporar, em seu cotidiano, o trabalho coletivo, as relações solidárias, os diferentes saberes e a participação das diferentes pessoas. O encontro da escola pública com a educação popular produz processos reflexivos e atuações que podem gerar práticas que ampliem a face democrática da escola e aprofundem seus vínculos com os históricos movimentos de emancipação humana (p.17).

3.

Mariano F. Enguita. Os desiguais resultados das políticas igualitárias. Classe, gênero e etnia na educação. Tradução de Sonali Bertuol. Revista Brasileira de Educação. Set/Out/Nov/Dez 1996, n. 3.

Existem poucas dúvidas, acredito, sobre o caráter central e paradigmático da política educativa dentro do conjunto das políticas do Estado de bem-estar ou, mais genericamente, das políticas sociais do Estado. É verdade que outros capítulos sociais do orçamento podem mobilizar mais recursos, como os subsídios para os desempregados, os serviços de saúde ou as pensões, mas nenhum deles, como a educação, representa e incorpora a ideia de uma sociedade justa e de oportunidades igualitárias. Todos esses serviços, e outros, asseguram à população um acesso mínimo a certos bens (serviços públicos de saúde, educação obrigatória, subsídio básico, pensão assistencial), mas, para além disso, enquanto os outros possuem um caráter contributivo ou simplesmente reprodutivo (subsídio de acordo com a contribuição anterior, distintos níveis de assistência à saúde, pensões contributivas), o sistema educativo pretende manter um caráter igualitário, inclusive de discriminação positiva (educação compensatória, sistema de bolsas). O simples fato de que a política educativa afeta os cidadãos de modo direto no início de suas vidas, enquanto as outras mencionadas tendem a fazê-lo em fase mais avançada, ou mesmo ao seu final, redunda na diferença indicada, do mesmo modo que a crença geral de que a educação é por si mesma um importante determinante das oportunidades de vida, individuais e sociais. Para usar um jargão atual, os serviços de saúde ou a assistência social são políticas compensatórias, enquanto a educação é uma política ativa (p.5). O alcance e a evolução das desigualdades interterritoriais dependem, no plano supranacional, da divisão internacional do trabalho e, no nacional, das características geográficas e históricas do país e, em particular, do processo de formação e de consolidação do Estado (...). O Estado tende — entre outros motivos, porque faz parte de seu próprio compromisso — a homogeneizar a oferta educativa para além das fronteiras regionais e a reduzir as desigualdades, dentro dos limites técnica e economicamente factíveis, entre a cidade e o campo (p.6).

Passados e processos similares

Embora as desigualdades de classe, gênero e etnia sejam realidades distintas e requeiram tratamentos diferentes, elas apresentam importantes paralelismos que, em combinação com os contrastes associados, permitem uma melhor compreensão tanto das desigualdades em si como das políticas com que se têm defrontado. Os trabalhadores, as mulheres e as minorias étnicas seguiram processos até certo ponto semelhantes com relação à escola. Em primeiro lugar, foram simplesmente excluídos de escolas que eram da pequena e da média burguesias, para homens e não para mulheres e para a etnia dominante (p.6). As escolas nasceram como um fenômeno urbano, limitado à burguesia — no sentido primitivo — acomodada e a um setor da pequena burguesia vinculado ou candidato a vincular-se a funções eclesiásticas, burocráticas ou militares (p.6-7). Os demais, os camponeses e, em boa medida, os artesãos, para não falar do resto — os que não tinham terras nem ofício, o protoproletariado das cidades —, estavam excluídos de direito ou de fato. As mulheres, por sua vez, foram excluídas de fato — eram criadas junto a suas mães — ou incorporadas a “escolas” nas quais nem sequer se ensinavam as primeiras letras, mas apenas disciplina, piedade e boas maneiras. As minorias étnicas, por fim, acumularam episódios de exclusão, expressa até muito recentemente (...). Há dois bons indicadores disso, normalmente ignorados por essa história da educação que se confunde com a história das doutrinas pedagógicas. O primeiro está nas próprias doutrinas: ao contrário do que às vezes se afirma e quase sempre se deixa entender explicitamente, a Ilustração [o Iluminismo], corrente de pensamento que podemos situar justamente nas origens da pedagogia da época contemporânea, não foi um movimento inequivocamente favorável à educação dos trabalhadores, das mulheres e das minorias étnicas ou dos povos das colônias. Muito pelo contrário. A maioria dos philosophes (...) foi abertamente hostil à educação popular (...). A outra corrente do pensamento ilustrado, os economistas (e, com eles, os filósofos ingleses), nunca teve a menor dúvida de que as classes populares não deveriam ser senão disciplinadas e capacitadas para o trabalho. Quanto às mulheres, apenas Condorcet, entre todos os ilustrados de primeira linha, advogou firmemente por sua educação em termos equiparáveis aos dos homens. Finalmente, as doutrinas sobre a educação da razão humana não eram aplicáveis de nenhuma forma aos povos “selvagens”, coisa que na época era óbvia e não precisaria sequer ser mencionada, mas da qual se encarregou de lembrar justamente um ilustre ministro francês com uma larga experiência na administração colonial, Jules Ferry, ao afirmar que a Declaração dos Direitos do Homem não havia sido escrita para eles. A segunda pista [do processo de exclusão escolar] é dada pela história do magistério, concretamente, do recrutamento ou formação de professores especiais para esses grupos: trabalhadores, mulheres, minorias (p.7). [Depois,] esses grupos foram escolarizados de forma segregada. Os trabalhadores e as classes populares o foram nas “escolas alemãs” (assim chamadas na Itália), nas petites écoles, nas escolas populares, nas Volkschulen etc., que inicialmente não eram o nível primário de um sistema unificado, mas o único nível e tipo de educação ao qual tinham acesso, enquanto seus coetâneos das classes privilegiadas acorriam aos institutos, liceus, Gymnasia, public schools etc., que contavam com suas próprias classes preparatórias para os de menor idade. Esse dualismo ainda está fortemente presente na linguagem escolar, não apenas na conservação de alguns dos termos mencionados, como também em outros pares de conceitos que em parte perderam seu sentido, mas que nos lembram que a atual diferença de grau entre primário e secundário foi, outrora, uma diferença de classe: mestre/professor, escola/colégio, aluno/estudante, instrução/ensino... (p.8). As mulheres foram escolarizadas durante muito tempo em centros separados, uma situação que em numerosos países se prolongou até há relativamente pouco tempo. Se havia recursos materiais e econômicos e uma densidade suficiente de população, criavam-se centros diferentes para cada sexo já desde a escola primária. Se não, separavam-se meninos e meninas em classes distintas dentro da mesma escola, ou pelo menos colocavam-se os meninos a cargo do professor e as meninas, à parte, a cargo de uma professora ou da esposa do professor, que não necessariamente [era uma docente]. Isso era acompanhado de programas de estudo pelo menos parcialmente distintos na escola primária, e mais ainda na secundária. Com as minorias étnicas foi a mesma coisa; inicialmente de direito, como as escolas para negros do sul dos Estados Unidos, e depois de fato, como as escolas dos bairros negros do norte (p.8). Numa terceira etapa, todos esses grupos foram ou estão sendo incorporados ao que consideramos escolas ordinárias (...). Mas essas escolas “ordinárias” são também as escolas da pequena e da média burguesias, dos homens, da etnia dominante. Podemos dizer, então, que os trabalhadores foram incorporados à escola burguesa, as mulheres à dos homens e os ciganos à dos payos [não ciganos]. Para isso não se precisou de conspiração nem de nenhum plano perverso. Não é que ninguém tenha se proposto a fazer uma escola hostil aos novos grupos, mas simplesmente que ela se havia configurado previamente na medida dos outros. Depois de tudo, os outros, ou seja, as classes média e alta, o gênero masculino e a maioria étnica, não apenas estavam ali há tempos, como também aos mesmos grupos já pertencia o professorado e, principalmente, as autoridades com capacidade de decisão tanto em cada centro quanto na administração educativa de um modo geral. Mas, sobretudo, sua cultura, suas atitudes, seus valores, suas formas típicas de comportamento, suas visões de mundo de si e dos demais eram, como ainda são em grande medida, as dominantes na sociedade global e, muito particularmente, entre suas elites. Mais ainda: a escola havia sido fundada e estendida, pode-se dizer, para propagá-las: para difundir e legitimar a “cultura culta”, ou seja, o modo de vida da classe média; para socializar com vistas às instituições econômicas e políticas extradomésticas, ou seja, a metade do mundo então nitidamente masculina; por fim, para construir uma identidade nacional, vale dizer, diferenciada do exterior e sem diferenças internas, e para fomentar o progresso e o avanço da civilização, isto é, para aprofundar as distâncias em relação às culturas pré-industriais (p.9).

Reformas equiparáveis com resultados díspares

Os resultados [dos três tipos de reformas implementadas: compreensividade, coeducação, integradora] diferem mais ainda. Os mais brilhantes são, sem dúvida, os da incorporação das mulheres. Hoje, elas apresentam taxas de permanência, acesso e promoção superiores às dos homens em todos os níveis educativos, embora ainda não tenham acesso aos mesmos ramos e especialidades (...). De modo geral, pode-se dizer que as mulheres estão conseguindo uma educação similar à dos homens de sua classe e etnia (existem alguns redutos masculinos e, certamente, outra coisa é o acesso ao mercado de trabalho), o que equivale a afirmar que os resultados das reformas em geral foram positivos para todas as mulheres, independentemente de sua classe e etnia. Os efeitos da reforma compreensiva, por sua vez, foram medianos ou medíocres por toda a parte, apesar de sua duração mais longa e da maior ênfase posta nela (...). Quanto às minorias étnicas, temos de começar por dizer que os resultados são muito mais díspares, mas também com maior tendência ao desastre. Mais díspares, porque a dimensão da etnicidade é, por definição, mais ampla, são, portanto, os resultados dos diversos grupos étnicos minoritários. Existem minorias com resultados brilhantes, como acontece hoje nos EUA com muitos dos grupos de origem asiática ou aconteceu antigamente por toda a parte com os judeus (...). Contudo, junto a estas estão outras minorias com resultados desastrosos, como os negros e os hispânicos na América do Norte de origem dominante anglo-saxônica (pace México), ou como os grupos ciganos tradicionalistas na Espanha. E, como as minorias de piores resultados costumam ser incomparavelmente mais numerosas do que as outras, a diversidade tende em conjunto, como foi indicado, ao desastre (p.10).

Culturas, subculturas e papéis

Os grupos étnicos distinguem-se tipicamente uns dos outros por sua cultura, não importa o que isso seja; as classes sociais fazem parte de uma só sociedade e uma só cultura, embora possam — mas não necessariamente, ou não todas, de acordo com o conceito de classe que utilizemos — alimentar variantes mais ou menos distintas dessa cultura, o que se costuma chamar de subculturas; homens e mulheres, porém, pertencem a uma mesma cultura e subcultura, diferenciando-se simplesmente pelos distintos papéis sociais que estas lhes atribuem (p.11-12). As classes sociais enquanto tais (isto é, se não se sobrepõem aos grupos étnicos, como às vezes acontece) formam partes, altas ou baixas, dominantes ou dominadas, cultas ou incultas, exploradoras ou exploradas, de uma mesma e única cultura nacional (p.12). De ordem muito diferente é o caso dos papéis de gênero. É claro que podem ser papéis abertamente distintos, sem dúvida díspares e inclusive em boa medida contrapostos, mas sempre se trata de papéis atribuídos e aprendidos numa mesma e única cultura (e subcultura), e para serem desempenhados em seu interior (p.12-13). Nada disso teria importância se a escola transmitisse e valorizasse uma cultura neutra, ou múltipla, ou alheia a todos. Mas, como foi dito, cada grupo tardiamente incorporado o foi a uma escola feita na medida do que estava do outro lado da divisória, de modo que este joga sempre com vantagem e aquele com desvantagem. A cultura escolar não é, como já se criticou exaustivamente, “a” cultura no singular, a única cultura possível ou a melhor sem dúvida de todas as imagináveis, mas sim uma delas. Mais do que isso: é uma cultura (étnica), uma subcultura (de classe) e talvez destaque um tipo de papel (de gênero) (p.13). [Já a] composição social do magistério teria variado em detrimento dos alunos de classe baixa e em favor das mulheres, mas sempre mantendo-se bastante desfavorável às minorias étnicas. Em termos culturais, de mentalidades, o balanço pode ser semelhante. Um docente é, por definição, alguém que sobreviveu à escola e que decidiu ficar nela, o que quer dizer que se sente ou que se sentiu em algum momento relativamente à vontade entre suas paredes. É pouco provável, pois, que compreenda facilmente quem rechaça a cultura, os modelos de comportamento, os valores e as promessas da escola em nome dos que são próprios à fábrica, ao trabalho manual etc. Por outro lado, o docente é educado numa cultura em parte real e em parte pretensamente universalista, mas de qualquer forma com essa vocação, o que pode se converter — e, amiúde, converte-se — num sério obstáculo para sua aceitação de outras culturas. Não obstante, os valores de ordem, convivência, trabalho em equipe, comunicação verbal etc., característicos da escola e necessários para seu funcionamento regular, talvez pelo simples fato de ser uma instituição que ocupa tantas horas da vida da infância, poderiam resultar mais favoráveis aos modelos de comportamento típicos do gênero feminino do que aos de estrutura masculina. Além disso, a feminização da docência poderia significar, pelo menos potencialmente, um conflito entre segmentos de papéis para os meninos (subordinados como meninos etc., mas dominantes como homens perante a professora em posição inversa) e não para as meninas (p.15).

Graus de identificação e estratégias

O nível mais baixo de identificação é o que pode ocorrer em alguns grupos étnicos, embora não necessariamente em todos. Em geral, a identificação expressiva será baixa para qualquer grupo étnico, a não ser que se trate de indivíduos especialmente decididos a esquecer suas raízes (o que pode chegar a ser o caso de alguns grupos de imigrantes) e, ainda assim, com o limite de que não se troca de língua, cultura, etc., como de casaco. De qualquer forma, será logicamente inferior para as minorias do que para o grupo étnico dominante (e, a fortiori, para uma maioria dominada do que para uma minoria dominadora: pense-se na luta da maioria negra na África do Sul contra o ensino em africâner). Sua identificação instrumental, em contrapartida, pode variar desde cotas muito elevadas, se aceitam o modo de vida dominante e especialmente se têm fortes desejos de se incorporar a ele (como mostra o êxito da americanização dos imigrantes através da escola nos Estados Unidos), até cotas mínimas se querem manter-se distanciados dele (em geral, os grupos desavantajados nessa relação, que alguns antropólogos chamam eufemisticamente de “pluralismo estrutural”, ou seja, economicamente segregados no emprego e no mercado e resignados com a segregação). Isso poderia explicar, por exemplo, que a integração e os resultados escolares de numerosos grupos ciganos espanhóis estejam atrás, por exemplo, dos imigrantes mais recentes da região do Magreb. Para as classes sociais, a coisa pode ser mais complicada, apesar de sua aparente simplicidade. [Basta] apontar que os alunos da classe operária podem apresentar um nível baixo de identificação com a escola, tanto expressiva quanto instrumental, diferentemente de seus colegas de classe média. A baixa identificação expressiva é fácil de compreender: seu uso da linguagem, seus valores, suas formas de comportamento, seus gostos culturais etc. estariam mais distantes dos da escola, que são precisamente os de outra classe. De certo modo, para eles, identificar-se com a cultura escolar é abandonar a própria (...). Mais importante ainda é observar que, ao contrário do que supõe o mundo do ensino e, em particular, o da maioria do professorado e dos “experts” em matéria de educação, pode haver uma elevada dose de racionalidade também na baixa identificação instrumental. Por um lado, a promessa de mobilidade social que a escola lhes apresenta é, por sua própria essência, certa em termos individuais, mas falsa em termos coletivos. Tal como vaticinou o evangelho, são muitos os chamados, mas serão poucos os eleitos. Se o indivíduo calcula o valor do jogo, ponderando o que lhe é oferecido e as oportunidades realistas de consegui-lo, pode ser muito racional não participar (se bem que isso aumenta as oportunidades dos outros e, portanto, também contribui indiretamente para tornar mais racional a decisão desses outros de participar). Finalmente, no caso das mulheres, tudo leva a um alto grau de identificação e, portanto, de compromisso com a escola (p.16). Por um lado, se consideramos os três grandes cenários possíveis que se abrem diante de uma jovem na fase de sua vida em que deve tomar as decisões fundamentais sobre sua trajetória escolar, a saber, a própria escola, o lar e o emprego, salta aos olhos que a primeira é, certamente, (...) a mais igualitária e a que melhores resultados produzirá para sua autoestima; lar significa trabalho doméstico e subordinação, e emprego quer dizer salário baixo, qualificação escassa e discriminação, tanto mais quanto antes se incorpore a eles; a escola, em contraposição, é o único lugar onde, ao menos por um tempo, poderá medir-se com os homens e o será pelos mesmos parâmetros — ou quase — que os homens, até o ponto de permitir-lhe mostrar e demonstrar que é igual a eles e inclusive melhor do que eles. Por outro lado, uma mínima visão e previsão do mercado de trabalho lhe dirá que seus possíveis empregos normalmente estão nos setores terciário e quaternário, que costumam requerer uma educação formal superior, e que, para conseguir o mesmo emprego que o homem, precisará de mais e melhores capacidades e/ou credenciais do que ele, motivo pelo qual a decisão mais adequada de sua parte é armar-se, enquanto possa, de conhecimentos e diplomas. Na pior das hipóteses (...), por fim, permanecer na instituição escolar é permanecer na melhor das bolsas matrimoniais. O êxito feminino na educação e o êxito da reforma coeducativa, pois, não devem ser considerados produtos de uma surpreendente e feliz casualidade, nem, como pretendem alguns, o efeito perverso da combinação entre autoritarismo escolar e submissão feminina (que [...] explicaria o êxito das alunas, mulheres, como uma deplorável dádiva em troca de sua indigna submissão e o fracasso comparativo dos alunos, homens, como um abjeto castigo a sua saudável rebeldia), mas como resultados acumulativos de estratégias individuais bastante ativas num contexto relativamente favorável (p.17).

4.

Fábio Konder Comparato. O Princípio da Igualdade e a Escola. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (www.iea.usp.br/artigos).

Distinção entre diferenças sociais e desigualdades sociais (...). Quando se fala em diferenças sociais, estamos nos referindo àquelas diferenças que têm uma base natural ou, então, são produto de uma construção cultural. Tem uma base natural a diferença entre os sexos; isto provoca, inelutavelmente, uma diferença de comportamento social, uma diferença de posição social. Por outro lado, existem diferenças fundadas, digamos assim, num condensado cultural: costumes, mentalidades. Todos aqueles que seguem uma mesma religião, que têm uma mesma visão do mundo e uma mesma tradição tribal ou grupal, distinguem-se dos demais; são diferenças nítidas. Mas, ao lado disto, existem também, em toda sociedade, desigualdades, e estas dizem respeito não a diferenças naturais ou culturais, mas a um juízo de superioridade e inferioridade entre grupos sociais, entre camadas sociais, entre classes sociais. E este juízo de superioridade ou inferioridade acarreta, necessariamente, uma apreciação de estima ou desestima de um grupo em relação ao outro – de onde os preconceitos – e de valor social. Ou, então, fundamenta posições jurídicas nítidas: tal grupo tem tais direitos próprios, que são conhecidos, na técnica tradicional do Direito, como privilégios; outro não tem direitos, é um subgrupo, não pode se igualar aos demais. Na longa evolução histórica, a tendência é ir eliminando, aos poucos, as desigualdades sociais. Mas fazer a distinção entre aquilo que é, necessariamente, o reconhecimento de uma diferença natural ou cultural e, portanto, preservar essas diferenças e, por outro lado, eliminar as desigualdades sociais, é muito difícil (p.1). Justamente porque as diferenças naturais e culturais entre os seres humanos são fontes de mais vida e maior enriquecimento humano, é preciso lutar contra as desigualdades sociais, porque elas são fatores de enfraquecimento e, no limite, de autodestruição da sociedade. A desigualdade social não é criada pela natureza, ela é criada pelo homem, numa relação constante de força, de dominação e de exploração. E a luta contra esses fenômenos patológicos, no campo social, é ininterrupta e praticamente indefinida: quando se acaba de eliminar um foco de exploração social, surge outro, de modo que a perspectiva de luta contra a desigualdade social é contínua (...). A desigualdade é a marca registrada da sociedade brasileira, desde os seus primórdios. Eu diria que a nossa desigualdade, que é aquela que nós herdamos de todas as gerações que nos precederam – aquela que nós cultivamos, acrescentamos e legamos aos nossos sucessores – é muito mais de costumes e de mentalidade social do que de ordem jurídica. Claro que existem ainda desigualdades de ordem jurídica. Uma delas, muito curiosa, é o fato de que os diplomados de cursos oficiais de ensino superior e os ministros de qualquer religião têm direito a prisão especial, de modo que, se o nosso diploma, na sociedade globalizada e neoliberalizada, passa a valer cada vez menos, pelo menos esse valor ele apresenta (p.2). A desigualdade oficial, a desigualdade jurídica, marcada nas leis é uma exceção no Brasil (...). É uma exceção fruto da hipocrisia, muito mais do que da sinceridade (...). Há um certo aspecto na mentalidade brasileira que é a chamada cordialidade ou afetividade, melhor dizendo, que se opõe ao confronto e se opõe, sobretudo, às posições muito rigidamente marcadas e talvez (...) seja por isso que nós não gostemos das desigualdades marcadas na legislação: nós preferimos cultivar a desigualdade naquele ambiente de claro-escuro em que as coisas não aparecem com toda a sua nitidez. De qualquer forma, se a desigualdade é muito forte na tradição, na mentalidade, nos costumes, e se ela é superficial na legislação, poder-se-ia afirmar: “Mas isto é um choque; isto dará sempre um conflito entre a ordem jurídica e a ordem social ou cultural”. Pois bem, este choque não existe, porque nós sempre chegaremos a um ponto de acomodação em que o Direito é respeitado, mas não cumprido (...). Ora, por que razão nós chegamos a esse ponto em que a desigualdade é a marca registrada da nossa sociedade? (...) [Há um] fator oniexplicativo da nossa sociedade, ou seja, ele explica tudo (...). Há uma certa organização mórbida, que seria o “caldo de cultura” de todas as manifestações de crise. Esse caldo de cultura é o individualismo anárquico, peculiar aos povos ibéricos. O que eu quero dizer com isso? É o fato de que não existe, naturalmente, mesmo dentro dos grupos mais unidos, coesão social e consideração de que as pessoas não são importantes, o importante é o conjunto (p.3). Fundamental para uma compreensão mais nítida do que aqui se afirma é a leitura e a releitura do livro capital de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Aqui, como em todas as outras matérias, a norma fundamental é “conhece-te a ti mesmo”. O brasileiro precisa se conhecer, se conhecer como povo; e, para isso, é preciso ir às grandes fontes de reconhecimento da brasilidade; uma delas é Sérgio Buarque de Holanda. Há certos marcos no reconhecimento da brasilidade que nunca serão apagados. Eu diria, de forma muito sintética, que há quatro grandes marcos desse tipo, e são todos deste século. Logo na abertura do século XX, Os Sertões, de Euclides da Cunha, que foi um choque cultural extraordinário. Em segundo lugar, em 1933, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Em 1936, Raízes do Brasil. Em 1942, de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo. Aquele que tiver lido e meditado sobre essas grandes lições de brasilidade, terá, certamente, uma base muito mais sólida para viver e conviver no Brasil (p.4). Este fator predisponente da desigualdade, o individualismo anárquico, que Sérgio Buarque de Holanda chama de personalismo, nunca existiu. [E justamente isso] constitui um dos fundamentos do verdadeiro liberalismo (...). O liberalismo, como filosofia e visão de mundo, é fundado, basicamente, na igualdade. E esta igualdade é expressa, juridicamente, pela lei – a lei como norma geral e abstrata, que se aplica igualmente a todos. Essas foram noções de combate, a partir de fins do século XIX; noções de combate da burguesia, como classe montante, contra o predomínio aristocrático. Para a burguesia, era fundamental que se instituísse uma outra regra, um outro critério supremo que não fosse o bom nascimento, a boa estirpe. E esse critério supremo era o mérito: as pessoas concorrem igualmente, disputam igualmente, fundadas no mérito e, portanto, elas têm iguais chances, e a lei é igual para todos (p.4). O fato é que, para a tradição burguesa, que é a tradição liberal, do liberalismo (...) a lei é uma regra geral abstrata, que não faz acepção de pessoa, que põe todo mundo em pé de igualdade (...). Daí porque nós nunca tivemos esse respeito pela lei; nós sempre achamos que as coisas se resolvem com “jeitinho”. E um “jeitinho” o que é? É justamente a convicção de que cada um de nós é uma individualidade própria e todos os problemas têm que ser adaptados a nós. Nós não devemos nos adaptar aos problemas e, sobretudo, nós não devemos nos submeter a uma regra geral. A regra geral existe lá em cima, como uma espécie de dogma, que nós veneramos, mas não aplicamos. Nós queremos um tratamento personalizado, individualizado (...). Desigualdade entre ricos e pobres. Para entender isso, é preciso remontar na corrente histórica. Portugal foi, curiosamente, o primeiro país ocidental a instaurar a ordem burguesa. O que significa ordem burguesa? É a abolição oficial – ou pelo menos oficiosa – dos estamentos tradicionais e seus privilégios de nobreza, clero, militares. A Antropologia chegou à conclusão de que as sociedades indoeuropeias têm um modelo fundado em três raízes: elas são sempre organizadas no sentido de haver um estamento de guerreiros e nobres, um de clérigos e autoridades espirituais e o terceiro de trabalhadores. Isto prevaleceu até, digamos assim, as primeiras grandes revoluções burguesas do século XIX. Mas Portugal foi uma exceção notável. Já no século XIV, quem analisa, ainda que em superfície, a sociedade portuguesa percebe que, com a chamada Revolução da Dinastia de Aviz, a burguesia suplantou a nobreza. E a burguesia chegou com os seus valores, com os seus costumes, com a sua visão de mundo; e essa visão de mundo tem um símbolo, que é o cifrão, ou seja, a burguesia é o dinheiro. O dinheiro é o “deus Mamon” para toda a classe ou, se quiserem, o estamento burguês. Tanto isso é verdade, que os historiadores portugueses assinalam o fato de que já no século seguinte, o século XV – final do século XV –, El Rei era o primeiro mercador do reino, quando nos outros países, em volta de Portugal, todo nobre que comerciava decaía da nobreza. Em Portugal, o principal nobre, ou seja, o nobre dos nobres, o primus inter pares, que era o rei, era o principal comerciante do reino (p.6). Isto levou, certamente, à construção de uma sociedade em que o poder, o prestígio, o valor social estão indissoluvelmente ligados à propriedade, à riqueza, ao domínio econômico (...). No Brasil, é preciso não esquecer que nós esboçamos a nossa organização social com um regime patrimonial. As capitanias hereditárias eram espécies de feudos, que eram concedidos pelo Rei, não a nobres, a pessoas consideradas valorosas, mas não necessariamente da aristocracia (...). E, com base nisso, todo aquele que tinha a propriedade da terra, tinha poder político: ele podia até cunhar moeda, ele organizava as forças armadas – muito rudimentares, evidentemente, da época –, ele organizava o comércio, ele funcionava como juiz e executava sentenças. Tudo isso com base na propriedade da terra. O que é isso, se não o feudalismo? É claro que esse feudalismo, desde o início, foi sempre achamboado, como disse Euclides da Cunha, mas era a consagração de que, realmente, senhor e dono é o proprietário: nós devemos obediência a quem tem poder econômico (...). Com a introdução da industrialização, ligada à imigração, nós tivemos, não um enfraquecimento desse coronelismo, desse domínio fundiário, mas sim a sua transformação em algo urbano. As correntes imigratórias que vieram ao Brasil, sobretudo no final do século XIX, início do século XX, eram muito marcadas por esse domínio do dinheiro (p.7). O contraste sempre foi este, ou seja, o outro lado, aquele que não tem dinheiro, aquele que não tem riqueza, aquele que não tem posse de bens, sobretudo aquele que não tem escravo, não presta; ele é o lado negativo. Os pobres são sempre um peso (p.7-8). E esta situação – a indiferença pelo pobre, indiferença marcada, contínua, constante, teimosa – foi muito bem assinalada num outro livro, O Povo Brasileiro (...) [de] Darcy Ribeiro, me parece uma iluminação: a raiz explicativa da nossa evolução histórica está, sem dúvida, na desigualdade entre ricos e pobres – que é alguma coisa de fundamental. É importante notar ainda que isto gera toda uma série de consequências: uma delas, a mais comum, é o preconceito. Mas um preconceito curioso, porque ele raramente é reconhecido. Se todos nós, no fundo de nós mesmos, reconhecemos que temos preconceito racial, mas jamais ousamos proclamar, são raríssimos os brasileiros que reconhecem que eles têm preconceito contra o pobre. Existe outra coisa, ainda mais curiosa: o preconceito existe, muito forte, do pobre contra o pobre (p.8). Isso significa algo de muito sério: a principal desigualdade da sociedade brasileira, a principal fonte de preconceitos e de atritos e, certamente, o grande fator de atraso é inconsciente. A maioria esmagadora da população brasileira acha que não tem nenhum preconceito contra pobre; que o pobre é igual a todos, que não há nenhum problema etc. (p.9). O segundo grande foco de desigualdade também é muito forte, ainda que eu sustente que ele está abaixo da desigualdade entre ricos e pobres, é a desigualdade entre brancos e negros. A desigualdade entre brancos e negros pode ser aferida, de maneira indireta, se nós a compararmos com o relacionamento entre brancos e índios (p.10). A escravidão, no Brasil, teve uma peculiaridade em relação a outros países, e que foi o fato de ser uma escravidão universal. O negro escravo não era apenas o trabalhador; ele era também o companheiro de casa. A distinção entre escravos do eito – aqueles que trabalhavam na roça – e escravos de casa (escravos de fora e escravos de dentro) marcou profundamente a nossa psicologia. Nós que estamos numa civilização urbana, observamos isto, por exemplo, no tratamento que dispensamos ao empregado doméstico: há sempre uma espécie de travo, ou de fermentação que vem da escravidão, porque o escravo doméstico era tratado de maneira diferente. A promoção do escravo era sair da senzala e ir para a casa grande (p.10). Toda esta política de luta contra a desigualdade, que é marcada justamente pela reformação da sociedade brasileira, pode ser dividida em dois campos: a educação propriamente dita e o campo institucional. Uma das grandes falhas dos políticos, de modo geral, e das políticas de educação no país, é o fato de não terem prestado atenção à importância das instituições. As instituições são também pedagogas, como dizia Platão. São elas que nos ensinam, quando não seja pelo constrangimento que uma instituição em funcionamento acarreta para a nossa liberdade ou a nossa licença (p.12-13).

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